sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Claudia e Jon

Minha irmã e meu cunhado americano me proporcionaram inesquecíveis momentos nesta minha primeira viagem aos EUA, aquele tipo de lembrança na vida de uma pessoa que Chico Buarque, muito propriamente, chamou de tatuagem. Poder estar uma semana atrapalhando a rotina de uma casal na Los Angeles do começo do século XXI foi, para mim, um prazer tão grande quanto conhecer Nova York, senão maior porque, em se tratando de minha própria irmã, a tatuagem correspondente ficou com cheiro de carinho.

Esse Jon, ele é ímpar. Uma das últimas coisas que ele me disse antes de minha volta para o Brasil foi a piada mais engraçada que já ouvi. É tão engraçada que eu só consegui dar a ela o verdadeiro valor dois dias depois, já no Brasil. Mas antes de contar a piada, quero falar da Claudia. No final a gente faz algum tipo de enquete para votar em quem é mais maluco, ela ou o Jon.

Um dado importante a respeito da Claudia é que ela, na infância, era muito tímida, e até se casar com o Jon, era dentista. E que na época em que se casaram, Claudia já andava há algum tempo descontente com a profissão. E que depois de anos de farra, estava na hora de se apaixonar. Não quero dizer sua idade, apenas que é dois anos mais velha que eu, que tenho hoje 42. Ela me apresentou o Jon nos dias que eu me separava da Daniela, portanto em 2001. Fomos ao cinema ver não lembro o quê, e eu fui logo com os cornos do sujeito, posto que americano. Nem precisava muito: um cara que fez parte da equipe de computação gráfica do filme Matrix era namorado da minha própria irmã!

Jon é de Wisconsin, segundo ele a terra do “verdadeiro” queijo – o cheddar. Americanos, you know. Veio morar no Brasil no final dos anos 90 para, entre outros motivos, trabalhar na Tibet filmes, uma subsidiária da produtora Mega, acompanhando seu amigo João, que retornava ao país natal. Conheceu a Claudia nas noites do Rio – Baixo Gávea, se não me engano, e começaram a namorar. A coisa foi ficando, com o passar dos anos, esquisita: estava dando certo! O português do Jon, lapidado por árduos anos de convívio com a língua de Camões, tinha umas seis palavras – atualmente, 37 nos dias de chuva – então nós, irmãos, brincávamos que o Jon não entedia nada do que a Claudia dizia, e só a Claudia entendia o que o Jon falava. Eram, portanto, o casal perfeito.

A primeira parte da suspeita pôde ser confirmada pela história que a própria Claudia conta. Logo que ela se mudou para os EUA, o casal foi viajar de carro. Sempre que Jon corria muito, ela dizia para ele “devagar...”, e ele acenava. Até que na décima vez que ela disse “love-love, devagar...”, Jon finalmente desistiu:

– What is “devagar”?

Quanto a ninguém entender o Jon, essa é mole. O cara já foi engenheiro químico, punk e yuppie, é surfista, lê Dostoievsky, conversa sobre qualquer assunto e acalenta eternamente o sonho de viciar-se em alguma coisa. Experimenta de tudo que está ao seu alcance, além de outras que estão fora, o que torna ainda mais difícil interpretá-lo. Só amando mesmo.

Enquanto empregado no Brasil, Jon alugava uma cobertura duplex na Gávea, onde dava ótimas festas. Um belo dia chegou para mim e disse que queria fazer umas jam-sections nos finais de semana. Em 2002, montamos uma banda, altamente duchampriana, que, nos piores momentos, chegou a ter dois tecladistas (eu e Alexandre Contador), um guitarrista (Jon), vocalistas (Claudia e eu), baixista (Flávio Mario) e um DJ pilotando efeitos especiais num Mackintosh (João Dias). De 40 horas de ensaios, foram obtidos uns 6 minutos de qualidade. Parece pouco, mas foram 6 minutos gloriosos para a energia musical que sobrevoa o planeta. O estilo, hip-hop progressivo ou, para os íntimos, hip-rog, era inédito na história, com longos, longuíssimos, por vezes infindáveis solos de teclado do Alexandre. Um dos grandes minutos veio com a adaptação, para um ritmo digital pesado e contorcido, de uma tradição oral de minha família, uma cantiga indígena que suspeito ser espúria, cuja letra diz assim:

Tum Tum jacatunga-tê, esquindô jabaritê, jacatunga-tinga! Uê samaberebaba esquitum jabaritê jacatunga-tinga!

Até agora, descobri que se trata de uma música do folclore sulafricano, gravada pelo extinto grupo Virgulóides, com uma letra diferente, intitulada Dum Dum. Se alguém souber mais alguma coisa, a família agradece.

Acontece que a empresa do Jon foi fechada. Além disso, Jon estava ficando defasado no tipo de conhecimento que tem, e estava longe do grande mercado consumidor de suas habilidades, basicamente o hemisfério norte, e o casal se viu no dilema: como se manter no Brasil? A solução foi morar nos EUA.

O festejado casamento, porém, tinha que ser em Piraí, uma cidadezica no interior do Rio que está no coração de minha família há quatro gerações. A família do Jon – seu irmão, seu pai e a madrasta (sua mãe faleceu quando ele nasceu), que nos EUA moram em cidades distantes – também veio para a farra. O evento legal se deu no cartório da cidade: oito casais, alguns bastante humildes, um sem dentes, e dentre eles aquela dentista branca azeda e aquele americano com dreadlocks nos cabelos louros. A juíza, louríssima, bronzeada e divertida, teve a delicadeza de convocar uma mocinha de Piraí para traduzir a missa para o inglês. Para tal mocinha, e também para todos os presentes, foi um momento daquilo que os cristãos chamam, muito propriamente, de glória.

Então passei uma semana com esse casal. Eles vivem em Venice Beach, cidadezinha praiana mais ou menos chique colada em Los Angeles. Claudia está largando pouco a pouco a carreira de odontologia e desenvolvendo, rapidamente, uma nova carreira, de esteticista. Nunca ficou muito claro para família o porquê desta mudança, mas agora não tenho mais dúvidas: Claudia não agüentava a vida de dentista – até mesmo porque estava matando sua coluna – e acha, com razão, que com a experiência em estética facial que está acumulando, tem maiores e melhores chances de trabalho no mercado americano, e mais ainda no brasileiro, caso tenha que voltar. Claro que tamanha transformação aos 40 do segundo tempo traz para qualquer um compreensíveis ansiedades, que a Claudia vem enfrentando com admirável coragem e determinação.

Para o Jon, trabalho não parece ser seu problema. Já residiu (às vezes por pouco tempo, 3 meses) em lugares bastante diferentes como o Brasil, Índia e Austrália, além dos EUA, claro, sempre com trabalho. Há pouco tempo largou a Sony, onde participou de filmes como O Expresso Polar e Casa Monstro, porque o trabalho era excessivo. Atualmente, trabalha como freelancer em projetos e empresas produtoras menores, o que vem lhe permitindo dedicar-se a sua paixão atual, o surf.

Ou seja, os dois estão ralando como todo mundo. Mas na semana que passei com eles, ambos estavam praticamente de férias. Então me levaram para passear nas praias e comi nos melhores restaurantes japoneses de Los Angeles, como o Matsuhisa (do renomado chef Mobu). Conheci grandes amigos do casal, como Stuart, Ken Ibrahim, Creg, a italiana Monica e a alemã Zimona. Fomos a Las Vegas, treinamos golfe, fomos praticar tiro em clube de tiros, comemos grilos em restaurante no aeroporto de Santa Monica, percorri as famosas Sunset, Hollywood e Beverly boulevards, passei em frente ao Kodak Theater, onde é realizada a festa do Oscar, enfim, vejam fotos no meu álbum virtual http://www.flickr.com/photos/marcosgonzalezrj.

Mas o mais legal foram as situações que a gente sonha em ver ao vivo, mas imagina que só se transformando numa mosquinha. Foi ter disputado com eles o banheiro (a terceira coisa que a Claudia me perguntou assim que a revi, após dois anos, foi “a que horas você caga?”), ter lavado minhas cuecas na lavanderia do condomínio, ter visto vídeos no YouTube e ouvido o show de blues do Joe, irmão do Jon, no Second Life. Ter dormido no trambolho de uma cama de ar, que tínhamos que encher à noite e esvaziar toda manhã (a cama cheia no meio da sala durante o dia era, pelo que entendi, motivo de separação), e conquistado, dia após dia, a confiança do “bebê-gato”, que na última noite dormiu comigo (refiro-me ao Aki, não ao Jon). Ter acompanhado uma deliciosa porém ferrenha disputa pelo filme que iríamos assistir naquela noite de preguiça - o da Claudia era sobre uma escritora deprimida e suicida; o do Jon era de mortos-vivos que comem cérebros de não suicidas.

A piada do Jon é a seguinte: Você pergunta ao ouvinte “qual a pior parte de ser um (aqui você pode incluir qualquer atividade ou profissão, de preferência a do ouvinte, como por exemplo designer ou patinador)?” A pessoa diz qualquer bobagem, e você responde: “É contar a família que você é gay”. O Jon já passou um dia inteiro aplicando a filosofia desse chiste num ambiente com profissionais masculinos de computação, mas parecem haver indícios de que ele faz efeito também em botecos.

Por ora, não adianta você ficar tentando achar graça ou entender a grandeza da piada, pois isso só lhe ocorrerá daqui a uns dois ou três dias.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Foi um Rio de que passou em Nova York

Hoje estou de partida para Los Angeles, para ficar uma semana com minha querida irmã Claudia. Então, para concluir essa grande viagem por NY, nada melhor que um bate-bola comigo mesmo.

Uma palavra: Astonishing! Sempre que um crítico, de cinema ou teatro, principalmente, está meio sem idéia sobre o que dizer da obra, ou mesmo o que achou dela, usa esse adjetivo – e sempre me vem à mente completar: “saúde”. Em segundo lugar, cabeça com cabeça, vêm “mesmerizing” (hipnótico) ou “must-see” (imperdível). Embora clichezões, refletem bem meus sentimentos em relação à cidade.

Uma frase: “Stand Clear of the Closing Doors, Please” (afastem-se das portas sendo fechadas, por favor), que é pronunciada em cada estação do metrô nova-iorquino. Como dos 40 dias na cidade eu devo ter passado uns 10 dentro do metrô, a frase ainda ficará ressonando em mim por um bom tempo. Mas não estou sozinho; o Google retorna quase 800 referências a ela...

Moda masculina: para ser cool em NY esta semana, a moda é ser japonês (na falta deste, qualquer oriental serve), jovem (até 25 passa) e muito magro (50 kg estourando). Se você se enquadra neste perfil, então atenção: aquela camisa xulé branca com gola esgarçada em “V”que você só usava para dormir, e mesmo assim quando a namorada não estava por perto, é o que há no momento. Acordou, é só sair. Se estiver frio, lance casualmente alguma coisa por cima, de preferência no estilo o-defunto-era-menor. A calça deve ser preta e colada ao corpo; nos pés, pasmem, tênis branco. E um iPod, claro, para garantir a beleza da indiferença. Uma figurinha assim acaba de sair na Time Out desta semana, seção “Out There” (Por aí), mas eu já tinho visto vários no mesmo padrão. Se por acaso você não se enquadra no perfil, nem fazendo regime, então paciência: seja elegante e já estará de bom tamanho.

Moda feminina: não reparei nenhuma moda específica feminina, até porque sou casado e não fico olhando para mulher.

Outras modas: Aquecimento Global, falar mal do Bush, alimentação eticamente correta, e documentários. Até diretores consagrados em filmes de ficção, como Barbet Schroeder (Mulher Solteira Procura) e Jonathan Demme (O silêncio dos Inocentes) estão lançando documentários. De Schroeder, assisti aqui O Advogado do Terror, sobre um argelino meio chinês que foi o advogado de defesa de alguns tiranos famosos, como Slobodan Milosevic e Carlos, o Chacal.

Uma foto: NY é talvez a capital mundial da saudade, das partidas e chegadas, das idas e vindas, do fluxo contínuo do passado para o presente. Então, para representar tudo isso, escolhi a foto abaixo, que tirei no Staten Island Ferry.

Um filme: Não é toootalmente astonishing, mas “La Vie em Rose”, filme biográfico sobre Edith Piaf, vale a pena pela atuação de Marion Cotillard, que parece incorporar a cantora francesa (edithpiafmovie.com). Bacana e estranho também foi ver Macunaíma num cinema todo americano, gigante e lotado. Não consigo imaginar o que deve ter passado pela cabeça daquela gente vendo aquele destrambelhamento total. E Dina Sfat, hum, no auge de sua beleza...

Um show: Project/Object Performing Music of Frank Zappa Featuring Napoleon Murphy Brock, sexta-feira, 12 de outubro, no Lions Den. A música de Frank Zappa já é uma aventura que navega pelo jazz, rock progressivo, psicodélico e irônico, com alguns toques de tropicalismo a la Mutantes, e o show desses caras em sua homenagem foi, como eu poderia dizer, mesmerazing! Quase 4 horas de duração, gente entrando e saindo para tocar e cantar, uma energia incrível, com direito até ao instrumento russo Theremin (patenteado em 1928), que se toca sem encostar a mão, e produz um som tipo disco voador de filme trash antigos.

Um sujeito: Jim Prochilo, ou simplesmente Jimmy. Meu grande companheiro nessa viagem, e só espero que não tenha ido à falência por minha causa, pois cismou de pagar tudo.

Um agradecimento: ao New York Botanical Garden, pela incrível oportunidade que me proporcionou, e aos amigos que fiz ali, pelo carinho e atenção com que me trataram.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Sarah Lee em Nova york

Lendo a revista Time Out New York (timeoutnewyork.com, mas existe em outras cidades grandes americanas), ou simplesmente Tony, edição de 4 a 10 de outubro de 2007, eu, um carioca esperto e safo, me senti uma velhinha republicana e virgem do meio-oeste.

Para quem quer saber o que rola na cidade (a dica foi do Jimmy), a Tony é muito útil: é uma revista semanal, na linha Veja Rio, só que é vendida, por três dólares, e tem o dobro de páginas. É grande porque traz a mesma programação cultural, completa, em pontos de vista diferentes – dividida por seções, por público alvo, por bairro ou por dia da semana. Fora isso, a revista tem um tema principal, e o daquela semana era sexo. Não se deve perder de vista que não se trata de uma revista para um público especializado, como uma Playboy, mas para todos que se sintam incluídos entre os nova-iorquinos modernos e antenados. Seu público alvo parecem ser as classes mais abastadas, na faixa dos 20 aos 50 anos, portanto era de se esperar que tratasse do tema sem grandes pudores, assim como esperaríamos no Brasil, mas a edição em questão vai bem além dos similares nacionais.

A capa da revista já promete debater não a xaropada de "discutir a relação", diferenças entre os homens e mulheres ou “como recuperar seu namorado em três dias”, mas sim as fantasias sexuais, e de forma mais explícita possível. Também não se trata de temas proibidos e misteriosos como homossexualidade, pois Nova York já passou faz tempo dessa idade – a Tony tem uma seção totalmente dedicada aos gays e lésbicas, da mesma forma que tem uma para crianças; aliás, esta vem em seguida daquela. O negócio é mais embaixo, ou por outra, é em cima E embaixo, depende do freguês.

Para começar, a revista publica alguns relatos de novaiorquinos que vivenciaram suas fantasias. Audacia Ray, que andava entediada com sua vida de sexo grupal, narra sobre a noite feliz em que foi duplamente penetrada, isto é, penetrada ao mesmo tempo (DP para os íntimos, muito íntimos), pelo namorado e uma amiga do namorado, como ilustra a foto acima, tirada da própria revista. Em outro relato, Samantha Jones, estressada com assuntos de dinheiro e carreira, queria porque queria experimentar um “splosh”, ou seja, sexo lambuzado com alimentos. Na dúvida sobre o que usar, ela e seu namorado foram ao supermercado e compraram pudim de baunilha e espaguete com molho de tomate, descartando o chocolate e o chantilly por serem muito clichê. Como se pode imaginar, a trepada foi desastrosa, mas o casal conseguiu obter boas risadas e um quarto imundo ao final da experiência. Zippy Reynols queria fazer sexo em público, e o fez, num campo de baseball, às duas da manhã, com alguém que conheceu num bar. Tess Danesi queria ser estuprada, e combinou tudo com o namorado, mas ele o executou com tanta veracidade que ela ficou com medo dele. Kay Poison, por sua vez, queria apanhar, ser chicoteado e humilhado por uma fêmea em um ritual sadomasoquista, e para tal contratou Mistress Coraline. A lésbica Pamela Marks queria transar com uma prostituta transsexual. Alpinia Dean fez sexo com sua bicicleta. As histórias são ilustradas por fotos picantes, enriquecidas por comentários de James Bufalino, hilariante comentarista sexual da revista.

A revista prossegue, relacionando então alguns fetiches numa tabela de duas páginas, com perversões em linhas, e nas colunas, pequenos textos sobre o que é tal fetiche, como começar, quais são os riscos e dicas de quem já o pratica. Alguns exemplos são tara por pés, ou por “hentai” (qualquer pornografia na forma de desenho em quadrinho, principalmente japonês), brincar de médico, sexo por telefone, prazer com eletricidade e o “controle da respiração”, que é aquela coisa de colocar saco plástico na cabeça para obter maior prazer sexual, cujo maior risco é, obviamente, morrer (como o público alvo deste blog é talvez mais amplo que o da revista – em outras palavras, minha mãe o lê - exerci aqui meu direito reprimido de censor).

Em outra página, são analisados os resultados de uma pesquisa sobre as preferências do nova-iorquino, divididos em quatro grupos (homem heterossexual, mulher heterossexual, homem homossexual e mulher homossexual), que responderam perguntas tais como: se você fosse convidado para ser um personagem numa “brincadeirinha”, qual seria sua preferência? (opções: policial/bandido(a), médico/paciente, entregador de pizza/cliente, presidente/secretário(a) de Estado); complete a frase “minhas fantasias sempre envolvem...” (opções: múltiplos parceiros, pessoa do mesmo sexo, brinquedos sexuais, ânus); se você ficasse invisível de repente, que local você gostaria de ir para uma sessão de voyerismo? (opções: o banheiro de um colégio de segundo grau, o quarto de dormir de Brad Pitt e Angelina Jolie, vestiário de academia de ginástica, set de filmagem de filme pornô) etc. Daí para baixo, bem para baixo.

Crônicas e colunas seguem, entram as seções e o assunto não se extingue: a seção sobre gastronomia, uma matéria sobre como os chefs de cozinha (que são popstars em NY) sabem que os animais que usam em seus pratos foram felizes, inclusive se tiveram uma boa qualidade de vida sexual. As soluções passam por monogamia entre porcos, vaginas artificiais para bois, por aí. Na parte sobre bares, a revista indica locais onde se pode jogar Erotic Photo Hunt, um game em que o jogador tem que olhar uma seqüencia de fotos eróticas, apresentadas duas a duas, uma ao lado da outra, e dizer se existem diferenças entre elas. Mais adiante, leitores viciados em pornografia comparam tecnologias de HDTV. Página seguinte, uma reportagem sobre um loja de produtos para sadomasoquismo. Outra seção, intitulada The Nether-lands, começa assim: “Cinco ou seis anos atrás, meu ex me pediu uma ‘brasileira’ como presente do dia dos namorados. Eu fiquei indignada, pois não queria ficar igual a uma estrela pornô ou, pior, uma criança!” A ‘brasileira’, no caso, significa uma depilação total dos pêlos pubianos, e a reportagem é sobre isso. Termina com gráficos em pizza sobre os hábitos dos nova-iorquinos no que se refere a depilação. E por aí vai: uma matéria didática sobre como fazer sexo oral, detalhes de uma viagem de um senhor a um resort na Virgínia do Norte, onde ele desfrutou de uma prostituta, entre outros prazeres, com tudo pago pela Tony. Todos os textos são acompanhados por fotos e dicas de sites, e também há propagandas diversas, de vibradores, pontos de encontros de solteiros que desejam conhecer moças e/ou rapazes russas, judeus, europeus em geral, enfim...

A revista parece assim participar de um esforço contínuo que o nova-iorquino faz para se diferenciar, liberar-se das repressões e respeitar as diferenças, mesmo as mais bizarras, levando adiante a filosofia do ultra-politicamente-correto. Uma das coisas que chamam atenção nos EUA é sua busca incessante por ser “o mais” – o país mais livre, o mais rico, o mais forte – e essa obsessão é chuchada diariamente na mente de cada um dos americanos. Assim, Nova York não quer apenas se libertar sexualmente, quer demonstrar que é – e parece ser mesmo – a cidade mais democrática do mundo. Temos que ficar de olho, pois essa mixórdia daqui é um laboratório único e muito interessante sobre a humanidade pós-moderna. O que não impede que eu, Sarah Lee, fique chocada.

(Para finalizar, uma contribuição à feticharia, que aprendi num livro de história sobre nossos antepassados portugueses: a expressão “afogar o ganso” não é metafórica, mas literal – costume dos patrícios de comer o cu do ganso enquanto sua cabeça é afogada numa bacia d’água. Segundo consta nos registros, dá um grande prazer – não para o ganso, claro.)

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Frenesi fotográfico

Tiro fotos de tudo quanto é coisa, e percebi que, se a pessoa bobear, ela sequer olha para a coisa em si. É a conhecida “síndrome do japonês”.

A primeira vez que fui ao MoMA, peguei a boca livre das sextas-feiras em que, depois das 4 da tarde até as 8 da noite, o ingresso é gratuito. Cheguei meia hora antes de começar, e fiquei no meio de uma fila indiana que se formava no final do quarteirão, num terreno baldio exclusivo para ela, uma oportunidade para ficar ouvindo a conversa alheia, embora não entendendo bulhufas. A fila não parava de crescer, e foi ficando enorme. Havia ali uma certa tensão no ar, tipo “Os Pássaros”, todos ávidos por atacar o museu.

Quando chegou a hora, a fila foi conduzida à entrada principal do MoMA por guardas de preto, passando antes defronte ao Museu de Arte Folclórica (ou seja, arte de países do terceiro mundo), uma situação de certa forma humilhante, pois todos os homens e mulheres de negócio que passam ao largo devem pensar, imagino eu, “turistas, humpf...” Bem, a situação é humilhante e totalmente desnecessária, já já explico por que. O fato é que, assim que as portas giratórias foram liberadas, uma súcia cobiçosa espalhou-se a esmo nos espaços minimalistas do museu, apinhando-se nas escadas, elevadores, cafés, átrios e nos outrora sossegados espaços para refrigério, assolando inocentes voluntários à procura informações óbvias – quando bastaria ter calma e ler o manual – banheiros, já não mijam faz horas, e aparelhos com áudio sobre as obras expostas, para entenderem as três primeiras e ficarem carregando aquela geringonça nas demais.

Mas afinal, o que é que esse povo vai fazer no MoMA? Aí varia: alguns estão ali para tirar a própria foto, aquele tipo de foto que aparece você e sua companheira fazendo uma cara qualquer que se presume engraçada, embora estourada por causa do flash, em que no alto vê-se o céu do lugar onde se está. Serve para mandar pelo celular para os amigos sentirem inveja, ou para lembrarem-se, ao fim do relacionamento, daquela vadia ou daquele escroque. Outros estão ali para fotografar tudo que não se mexa, enquanto o memory stick da máquina digital agüentar, pois só têm aquele dia para ir ao MoMA e não dá para ficar prestando atenção em tudo. Se der, no café da manhã, dão uma olhada. Pais levam seus filhos de dois anos para despertar neles o interesse pelo mundo da arte, na esperança torná-los mais inteligentes, até porque não havia com quem deixar aqueles infelizes, mas o que as crianças gostam mesmo é ouvir seus próprios choros aborrecidos ecoarem nos salões. Uns não têm nenhum interesse particular em museus, muito menos em obras de arte, o que não podem é voltar para casa sem ter ido ao MoMA e ao Fantasma da Ópera – que vão pensar os colegas do trabalho? Há, por fim, aqueles que vão para ver os quadros famosos: “Meu bem, corre! Demoseledavinhon!” As mocinhas retratadas por Picasso estão até meio tronchas, a do alto à direita chegou a ficar cega de um olho, por conta dos flashes (proibidos) que já levaram no meio dos cornos.

Fica aqui a boa notícia: tal comportamento não é coisa de brasileiro; holandês também é gente como a gente.

Mas, como disse, tudo isso é desnecessário. Nas outras duas vezes que fui ao MoMA, sempre no sextão livre, cheguei à cinco. Nessa hora, as mocinhas da recepção já estão recompostas e penteadas e a súcia, exausta, não agüentando olhar mais nenhum quadro, pode ser até do Papa em pessoa, e sentam-se todos diante do chato do Monet, fingindo que estão apreciando suas impressões sobre plantinhas e laguinhos, quando na verdade estão que não se agüentam com a coluna variando, as varizes latejando, os calos gritando e os pés fervendo dentro daqueles malditos scarpins – quem foi a besta que falou para vir de scarpin?

Como eu disse no início deste, no entanto, eu também venho sofrendo o transtorno do frenesi fotográfico. Portanto tenho centenas de fotos para mostrar para os parentes e amigos. Ao invés de importuná-los com sessões infindáveis – “aqui, sou eu comendo tomando cerveja da China”, “este sou eu na Estátua da Liberdade”etc. – resolvi explorar mais uma ferramenta desses tempos modernos, criando o maravilhoso álbum de fotografias de minha viagem na internet, cujo endereço é http://www.flickr.com/photos/marcosgonzalezrj, que pode ser vizualizado também na na forma de slideshow. De antemão aviso que não estou em quase nenhuma foto. Eu não queria ficar importunando transeuntes para tirar foto de mim, e as que eu mesmo tirei, com temporizador, sempre ficava na dúvida se eu devia ficar olhando para a lente ou fazendo tipo de que fui pego de surpresa por mim mesmo. Em suma, cheguei à conclusão que as piores fotos eram aquelas em que eu aparecia. O bom de elas estarem na internet é que aqueles que não tiverem paciência de olhar podem simplesmente chegar para mim e mentir: adorei suas fotos, principalmente aquela (e aqui a pessoa pode encaixar um local qualquer, como Central Park, por exemplo). Sintam-se à vontade.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Comes e bebes

Para não viajar no orçamento, costumo fazer uma refeição barata e outra cara, a famosa técnica “vender o almoço para pagar o jantar”. O café da manhã é em casa, onde, sim, eu poderia cozinhar, mas não tenho nem talento nem paciência. Minha viagem tem sido, então, mais estética do que gastronômica, digamos assim. Até pretendia ir bons restaurantes, e tenho ido a alguns, porém com uma freqüência menor do que imaginava, por diversos motivos. Primeiro que meu foco são as expressões culturais, e então almoço ou janto nas imediações. Segundo é que nem sempre tenho coragem de entrar nos bons restaurantes, ou porque estou fedido e suado de longas caminhadas e, ao chegar ao restaurante, vejo que não é para meu bico, ou então é romântico demais para um viajante solitário, caro demais, fresco demais e estou com pressa etc. O fato é que já comi de tudo um pouco, do bom e do pior. Comecemos pelo bom.

Nova York está coalhada de grandes restaurantes servindo a culinária de praticamente todo o planeta. Quinze mil, segundo o Katia Zero, um de meus guias espirituais. Existem os clássicos, alguns com mais de cem anos, e os modernosos, que nascem e morrem feito moscas. Outro dia, sem querer, passei em frente ao Petrossian, que desde 1920 serve os melhores caviares e vodkas russos e é candidato natural a qualquer lista de cem melhores restaurantes do mundo. A decoração art déco, o chão de granito, o bar em mármore e as banquetas mink me convidaram a mudar de calçada. Afinal, um cara do Bronx como eu não pode ser visto num restaurante assim, onde até o valete que estaciona carros veste Armani. Mas em alguns eu entro escondido, quando os preços são convidativos.

Aliás, o que me derruba raramente são os preços pratos principais, que ficam entre 10 e 20 dólares, mas os acompanhantes (taça de vinho, U$7; sobremesa, U$ 7 a 10; cafezinho, U$4). Somando-se aí as taxas (mais ou menos 9%) e as malditas gorjetas “sugeridas” (15 a 20%), tudo pode ir para o beleléu.

Comi algumas vezes no Angelo’s, por exemplo, um restaurante que já foi sinônimo do Little Italy de Manhattan, mas que hoje está ao lado do auditório do David Letterman, em Midtown, que é um lugar de passagem para cima e para baixo, portanto prático. Fico de olho nas coisas diferentes de países esquisitos como a Turquia ou Índia, mesmo que ao pedir nem sempre eu saiba o que virá. Caso do Cafetasia, no Village, brasserie supostamente tailandesa, mas na verdade contemporânea e minimalista, onde resolvi experimentar o menu de degustação. Escolhi meio aleatoriamente de uma lista três itens para comer e um drinque. Vieram um espeto de carne, cebola e pimentão divinamente temperados com alguma coisa que não descobri, um gyo-za avinagrado de gengibre e frango, um crepe de tomate, amendoim e açafrão, tudo isso acompanhado de dois molhos condimentados, um barbecue e outro à base de shoyo, e uma bebida bem adequada, para não dizer o contrário: champanha rose com canela, quente. Para comer comida étnica autêntica, porém, uma boa idéia é sair de Manhattan e se aventurar para as bandas do Brooklyn, Queens ou Bronx, onde se encontram as comunidades de europeus e sulamericanos, e conseqüentemente suas cozinhas. É o que pretendo fazer, antes de partir.

Tenho comido muita massa com frutos do mar, talvez meu prato predileto (se não levarmos em conta coisas como feijão, arroz, carne moída, farofa e abóbora). Um grande momento foi no Smoke, onde fui com Jimmy para ouvir jazz, prova de que nem só de restaurantes vive a boa comida de Nova York. Eu nem estava com muita fome, mas para acompanhar meu amigo, pedi um prato de macarrão com camarões e mexilhões. O Smoke é um lugar escuro, pequeno e estava apinhado de gente silenciosa, então eu não levava muita fé na cozinha do lugar – afinal, jazzista que é jazzista não come; apenas fuma e bebe. Mas o prato estava simplesmente delicioso. O problema é que, enquanto meu vizinho parecia em transe com a virtuosa seqüência de músicos e músicas dissonantes, eu me via tentando desgrudar um mexilhão de sua concha sem afundá-lo na imensidão do macarrão à luz de uma mísera vela e sem fazer barulho.

Para quem não está podendo, há sempre os fast-food como os macdonalds e os burgerkings da vida, ou as carrocinhas de esquina, com cachorros-quentes, bagels, sorvetes e pipocas. Para lanches em geral, são muitas, muitas, muitas opções de delicatessen, cafés, lanchonetes, padarias chiques, cada uma mais apetitosa que a outra, para todos os bolsos. A rede Starbuck, que está se instalando no Brasil (por enquanto, só em São Paulo), aqui é uma praga, tanto quanto os esquilos. No Lindy’s, que prometia o melhor cheese cake do mundo, paguei (caro) para ver e a mocinha cumpriu sua palavra: um tijolo de pura caloria, com cobertura viscosa de morangos, tão perfeitamente vermelha que parecia de plástico, dessas que refletem a luz do teto. No Little Italy do Bronx (sim, existe outro, bem melhor e com italianos, ao invés de chineses), tive problemas em escolher o que comer. Vejam vocês mesmos por que, nas fotos a seguir.


Existem ainda excelentes opções para aqueles novaiorquinos mais naturebas ou que procuram uma melhor qualidade de vida, ou seja, os ricos. Eu mesmo tive de declinar de um convite para um restaurante japonês macrobiótico, pois não imagino nada menos calórico que isso. Prefiro, se o caso é estar em sintonia com a natureza, comprar frutas no mercado da fazenda que, todas as quartas-feiras, se instala dentro do NYBG. Comendo as maçãs vendidas ali, que parecem ter saído dos filmes de Walt Disney, sinto-me perfeitamente curado das panquecas com bacon do dia anterior.

Mas nem tudo são flores. O pior de Nova York são as comidas prontas, com destaque para um insuportável mashed potatos, que supostamente deveria se parecer com um purê de batatas, mas tem gosto de massa de modelar. O americano pelo jeito não liga, pois o mashed potatos é exibido com orgulho em todos os supermercados e servido até mesmo em restaurantes razoáveis. O feijão é outro. O modo de preparo aqui é o seguinte: coloque feijão para ferver, ponto. Sal a gosto. Morro de saudades do alho crocante, cebola, paio, e eu, que nunca soube para que servia o louro e suspeitava que era só para atrapalhar – o louro sempre vem no meu garfo – agora dou meu braço a torcer.

Manteiga, cismaram que mata, então inventaram um coisa para substituí-la. Estou falando da manteiga artificial, uma molécula inventada por algum cientista maluco, agindo sob pressão de alguma indústria oportunista, como por exemplo a Knorr, que lançou a inacreditável marca chamada “I Can’t Believe It’s Not Butter”. Como em toda história evolutiva dos mamíferos nosso aparelho digestivo jamais lidou com nada parecido, é muito provável que “I Can’t Believe It’s Not Butter”mate muito mais rápido que a boa e velha manteiga de vaca. O azeite, se não for em casas refinadas ou de cozinha européia, é um líquido timidamente oleoso, insípido, inodoro e incolor, mas totalmente desprovido de gordura trans – e é isso que importa, no final das contas. Tudo, aliás, pretende-se livre de gordura trans, outra coisa de que tenho saudades.

Sinto falta de banana amarela - aqui estão sempre verdes. E casas de suco. Não entendo por que, sendo os Estados Unidos um dos maiores produtores de laranja, não se encontre facilmente um suco natural dessa fruta por aqui. O renomado café americano é desnecessário comentar, mas tudo bem, é cultural e eu respeito; a opção do café expresso atende, não fosse uma xícara contendo meio dedo mindinho de café custar uma fortuna e só tapar uma cárie nos dentes de um brasileiro ávido. Queijo parmesão ralado é outra raridade. Pode ser que eu esteja comprando no supermercado errado, mas ralado por aqui só chedar ou mozzarela. Em resumo, a regra é: em restaurante médio para ruim, havendo a opção de comida pronta, em conserva, pré-fabricada ou artificial, é essa que servirão. E ninguém reclamará.

Para terminar, um elogio: um hábito muito cordial daqui é servir um copo d’água, grande e cheio de gelo, a qualquer pessoa que se sente numa mesa para comer. Isso é generalizado, dos pés mais sujos aos restaurantes mais granfinos, sinal de que é cultural. Acho isso de uma consideração com o freguês sem medida, sério. Tudo bem que água é um produto farto na região, já que toda Nova York fica na foz de um rio caudaloso, o Hudson, e você pode beber em qualquer bica, mas isso não diminiu em nada a gentileza. No começo eu estranhei, pois os garçons ou garçonetes nem pertanejam – sentou, água – e eu ficava olhando para os lados, ei, ei, ei, eu não pedi água; essa água eu não vou pagar! Agora costumei. Bebo tudo, já que é de grátis.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

New York Film Festival

O 45º festival de cinema de NY começou dia 28 de setembro, com direito a festa de gala e engarrafamento de limusines, e eu estava lá. Fui só para bisbilhotar e ver se descolava um canapé, pois o ingresso para a noite de abertura, com apresentação do filme The Darjeeling Limited, era 40 dólares, e eu estava meio sem tempo. De qualquer forma valeu a pena. Postado junto ao corredor por onde desfilaram as celebridades da noite, tive meu momento paparazzi, me acotovelando com outros 40 colegas pela melhor foto de gente como Adrien Brody (King Kong, O Pianista), ator do filme de abertura. Não sei quanto anos ele tem, senão colocava aqui, entre vírgulas.

O festival ocorre em diversas salas em torno do Lincoln Center, um complexo de prédios deslumbrantes (lembram Brasília, e são da mesma época) que abriga o Metropolitan Opera House e o NYC Balet, entre outros. Da programação, estou de olho nos últimos filmes dos irmãos Coen (No Country for Old Men), Abel Ferrara (Go Go Tales), Claude Chabrol (A Girl Cut in Two), Brian de Palma (Redacted, sobre a guerra do Iraque), um filme russo de 2007 chamado Alexandra, sobre a guerra da Chechênia, e a nova versão de Blade Runner (com corte do diretor Ridley Scott). Mas pode ser que não veja nada disso e simplesmente entre no primeiro que tiver vaga. Um, em especial, me interessa bastante: Fados, do Carlos Saura, que apresenta um vasto panorama deste estilo musical, desde as formas mais tradicionais às suas variações mais modernas, e conta com a participação de alguns dos principais cantores portugueses, além dos nossos Chico Buarque e Caetano Veloso.

Está também no festival a obra completa de Joaquim Pedro de Andrade: O Mestre de Apicucos (1959), Garrinha, Alegria do Povo (1962), O Padre e a Moça (1965), Brasília, Contradições de uma Cidade Nova (1967), Macunaíma (1969), Os Inconfidentes (1972), Guerra Conjugal (1975), O Homem do Pau Brasil (1982), além de outros sete curtas-metragens. Joaquim Pedro é descrito como uma figura chave do Cinema Novo que não se desviou de seus princípios estéticos até sua o fim de sua lamentavelmente curta carreira. Fosse interpretando, criticando ou enaltecendo a cultura brasileira, o diretor “fazia uso de uma luz vibrante e cores vigorosas, extraindo as melhores atuações de grandes atores do país”.

Há um evento que eu gostaria de ir, a New Line Cinema Gala, dia 5 de outubro, em benefício da campanha da Film Society para a construção de um novo centro de cinema. A entrada, sugerida, está na faixa dos U$ 2.500, mas infelizmente não poderei comparecer. Nesse dia, vou rever Macunaíma.


segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Jimmy

“Você tem que procurar o Jimmy!” – sugeriram minhas irmãs Silvia e Bia, que conheceram esse novaiorquino no Rio, mais especificamente no Clube dos Democráticos – “O Jimmy, ele... você vai gostar do Jimmy, ele é um barato!”, elas não conseguiam me dizer por que o Jimmy era um barato, mas eu acreditei nelas. Quando não se consegue explicar por que uma pessoa é um barato, é porque ela o é; ao contrário, se me vêm com “você precisa conhecer o fulano, ele é um gênio desse negócio de computador”, já fico achando que o sujeito é um chato de galocha. “Procurou o Jimmy?”, insistia a sempre animada Silvia, mas eu alegava que precisava desses vinte dias batendo perna, conhecendo a geografia da cidade, justamente para aprender a me locomover nela. O que eu não queria era ligar para o cara sem saber lhufas, depois ele podia se sentir na obrigação de me levar de volta ao Bronx, que é a caixa-prego daqui, nem pensar. Mas então vinha a Bia: “O Jimmy, no caso...”

Enfim, mandei um email para ele, tipo “Hi, I’m Marcos, Silvia and Bia’s brother, from Brazil” etc., vai e volta, marcamos de assistir um show de blues no Village. O ponto de encontro foi no Bar Next Door, 129 MacDougal St, entre 3rd e 4rd. Eu estava todo me achando, literalmente, pois sabia exatamente onde era isso, já me perdi naquelas bandas pelo menos umas cinco vezes. Ao chegar no endereço combinado, porém, dei com um restaurante italiano, La Lanterna di Vittorio, e só então me lembrei que não sabia nada sobre o Jimmy, se gordo ou magro, alto ou baixo, nem mesmo a idade dele eu sabia, e em se tratando de minhas irmãs, podia ter qualquer coisa entre 15 e 20 anos. Um sujeito com cara de roqueiro das antigas, ex- Hell’s Angel, cavanhaque e tatuagens no braço, parou por ali, e eu o abordei: “Você é o Jimmy?” Não era, e eu paguei uma de viado, embora em Nova York isso até pegue bem.

Entrei no La Lanterna, todo à luz de velas e uma varanda romântica ao fundo, contei meu problema para o gerente, um velhinho italiano, talvez o Vittorio em pessoa, enquanto adentrávamos o estabelecimento:
– Procuro um sujeito chamado Jimmy.
– Como ele é?
– Não sei.
– Não conheço nenhum Jimmy.
– Nem eu.

Ao sair, finalmente o Jimmy estava lá fora, fumando um cigarro. Não achei o Next Door porque ele fica abaixo do nível da calçada, ou seja, no porão. Muito legal, um pub meio cavernoso e escuro, o teto a uns 10 cm acima da minha cabeça, um clima de jazz generalizado, mas sem fumaça, já que em Nova York é proibido fumar em bares e restaurantes. Estava lá um amigo do Jimmy, Paul, e ficamos batendo papo no balcão, tomando uns drinques. Tanto o Jimmy quanto o Paul falam bem o português, fluentemente, já que ambos têm muitos clientes no Brasil e América Latina (e o Jimmy foi casado com uma brasileira); os dois se conheceram, inclusive, na Varig – hoje Jimmy é representante de uma fábrica de papel que vende para os grandes jornais daqui, o Paul trabalha num banco.

O Jimmy fala não só o português, mas também espanhol, italiano (ele é filho de), francês e, acreditem, inglês. Como novaiorquino, é uma decepção: atencioso, bem humorado e inteligente, conhece o Brasil de norte a sul, adora o país pelo que ele tem de caloroso, e não é à toa que minhas irmãs se encantaram com ele. O Paul, que estava numa beca mais gravata e pasta de trabalho, é outra figura. Perguntei-lhe sobre o que fez no Brasil e ele ficou alguns segundos pensativo, antes de responder meio cinicamente: “é uma longa história”. E a contou, de um jeito engraçadíssimo, falando baixo, num português pausado e explicado.

Saímos antes do show de jazz começar, nos despedimos de Paul – ele ia para casa, enquanto eu e o Jimmy fomos jantar num mexicano próximo – mas antes nos deu cópias da coluna do José Simão, da Folha de São Paulo (estado com que ele mantêm maior contato profissional), que ele imprime na internet para aprender piadas e bobagens de brasileiros. Morria de rir, por exemplo, com os comentários sobre um campeonato de futebol gay que está havendo na Argentina, cuja organizadora tem o sobrenome “Rola”, ou uma foto de uma lanchonete em São Paulo chamada “Piriri”. Outra coisa com que nos divertimos foram as versões de termos brasileiros em inglês, como “little country girl” (caipirinha) e “little cry” (chorinho). Me lembrei, claro, de minhas irmãs e também das Denises, Reis e Barros.

Eis o Jimmy, conversando com a Silvia no restaurante mexicano. À base de cerveja, burritos, quesadillas e umas três tequilas cada, falamos de tudo um pouco, de nossas irmãs (ele tem cinco, e como eu, é o único homem: “I know your pain, brother” – disse ele, brincando), mulheres e filhas (ele tem uma filha que mora com a mãe no Brasil e estuda biologia), férias (12 de outubro, descoberta da América, é feriado aqui, o Columbus Day, e ele vai com a namorada russa para uma bela região de vinhedos na ponta de Long Island, a ilha vizinha a Manhattan), do Brasil, dos americanos, de Nova York, enfim: botamos o papo em dia. Marcamos de ir a um jogo dos Yankees, e o Jimmy ainda ficou de ver com um primo dele, John, que trabalha no MoMA, se eu poderia ir lá no dia que o museu está fechado para a gentalha. Imaginem isso! O cara fala português também, e sabe tudo de Modernismo. Já troquei emails com ele, marcamos para o dia 16.

Dali, fomos para o Terra Blues, assistir ao show do Lil’ Ed & the Blues Imperials, banda de blues puríssimo de Chicago, na linha “Ma baby is gone”, cantado e tocado daquele jeito que só quem traz toda a história da música negra americana na carcaça é capaz. O pequeno Ed, de turbante (Lil’ é uma abreviação de little misturada com Williams, seu sobrenome), é incrivelmente parecido com o ator Cuba Gooding Jr., o mesmo sorriso escancarado e até as mesmas caretas, só que mais velho; o homem toca uma sensual slice guitar ao modo clássico, sendo desnecessário descrever-lhe a competência. Michael Barrett faz a guitarra base, mas defende seus solos com muita elegância, introduzindo algumas sutilezas do jazz branco. No baixo, James "Pookie" Young é o que todo baixista deveria ser: um baobá negro de chapéu, impávido colosso; o baterista, Kelly Littleton, também segue a incrível tradição de não parecer um baterista – se encontro na rua, diria um matemático ou filósofo. Veja mais sobre a banda em http://www.intrepidartists.com/liled.html. A seguir, minha montagem de fotos que tirei durante o show, para vocês sentirem o climão.


No intervalo do show, meia-noite, saímos para um cigarro e formamos, sem querer, uma roda com uma irlandesa bêbada comédia, um americano que tava pegando ou tentando pegá-la, e um israelense cabeludo. Papo surreal. Jimmy precisou ir embora, pois no dia seguinte era dia de branco. Eu disse que ficaria até o fim. Diante de sua preocupação, eu lhe garanti que sabia como voltar para casa. De fato, peguei o metrô às duas, cheguei às três, bêbado, exausto – pois estava na rua desde as cinco da tarde – mas feliz pela grande noite.

O Jimmy... considero pra caralho o Jimmy! Vocês precisam conhecer o cara.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Helvetica!

Helvetica, a fonte, faz 50 anos em 2007.

Para quem não é iniciado no mundo do design, uma fonte é uma tipografia, um conjunto das letras e números que seguem um mesmo conceito visual, um estilo, que inclui desde a presença ou não de serifas (aquele pezinho embaixo do “t” ou à direita do “a”), a qualidade das curvas, o espaço entre as letras, todo uma gama de frescuras que fazem uma incrível diferença (tenho que perguntar aos meus amigos designers qual é a correta definição do que seja uma fonte).

A figura acima mostra algumas letras escritas nessa fonte chamada Helvetica. Repare o leitor alguns aspectos importantes sobre ela: primeiro, pode ser na versão mais gorda (bold, negrito) ou mais magra (light, thin), inclinada (italic) ou não, que ela não perde seu conceito; segundo, é uma fonte elegante, leve, agradável, simples e limpa (clean), que faz até kunstgewerbeschule parecer frugal. De fato, se você escrever algo como “Não pise na grama” com Helvetica, não é sequer necessário finalizar com “por favor”, pois a polidez da fonte já o traz em si. Olhando assim, para essa aparente candura, quem diria que Helvetica é por muitos considerada uma ferramenta subliminar cruel para massificação da globalização imperialista ocidental?

Tudo isso está no documentário Helvetica, do diretor americano Gary Hustwit (http://www.helveticafilm.com), a que assisti no IFC Center – outro dos cinemas para os novaiorquinos inteligentes. Não preciso dizer, o filme é delicioso.

Começa contando sobre o projeto da fonte por seus dois criadores, Max Miedinger e Eduard Hoffmann, em 1957, para a empresa de tipografia Haas Type Foundry, em Münchenstein, Suíça. O lugar onde ambos a desenvolveram está lá até hoje, claro. Naqueles anos, o design europeu vinha atualizando antigas fontes não-serifadas, como a alemã Akzidenz Grotesk, e o filho do Hoffmann nos mostra os registros das considerações de seu pai, funcionário da Haas, sobre a tipologia imaginada Miedinger, designer freelancer contratado pela empresa para tal. A fonte foi chamada inicialmente Neue Haas Grotesk, um nome que, com razão, seria considerado inapropriado para o mercado internacional (leia-se americano), então mudaram para Helvetia – que é a versão em latim para “Suíça” – e finalmente Helvetica.

Aproveitando-se de uma onda de popularidade do design suíço, Helvetica pegou. Começou a aparecer em logotipos de grandes empresas (Jeep, Lufthansa, Microsoft, Panasonic, Adidas), e o documentário entrevista alguns dos grandes designers da época, ainda em atividade, como o italiano Massimo Vignelli, criador da marca da American Airlines e de toda a programação visual do Metrô de Nova York, usando sempre Helvetica. Na opinião dele, não haveria motivos para usar outra fonte, já que Helvetica é perfeita para todos os propósitos. Segundo essa corrente, o que importa para a comunicação é a mensagem, portanto a tipologia deve ser neutra, além de elegante, e não “falar por si” ou chamar a atenção para si.

A influência de Massimo e outros designers famosos acabou transformando a fonte numa moda, quase uma sugestão, que se espalhou no mundo, e se agravou quando, em 1984, os computadores Apple Macintosh adotaram Helvetica como sua fonte padrão (default), e a partir daí, tornou-se tão comum aos olhos ocidentais que parecia ter sido criada por Deus. O documentário percorre sete países (Estados Unidos, Inglaterra, Holanda, Alemanha, Suíça, França e Bélgica) e entrevista dezenas de designers escritórios (além de Masimo, Erik Spiekermann, Matthew Carter, Wim Crouwel, Hermann Zapf, Neville Brody, Stefan Sagmeister, Michael Bierut, David Carson, Paula Scher, Jonathan Hoefler, Tobias Frere-Jones, Experimental Jetset, Michael C. Place, Norm, Alfred Hoffmann, Mike Parker, Bruno Steinert, Otmar Hoefer, Leslie Savan, Rick Poynor, Lars Müller, entre outros), mostrando sua predominância na comunicação visual urbana, desde out-doors a cartazes, folders e mensagems como “Puxe” ou “Empurre” portas, indicando que profissionais e amadores a utilizam quase sem pensar, ou mesmo quando pensam – a qualidade da fonte pesa até para aqueles que tentam fugir dela, como Eric Spiekermann. Paula Scher (NY) estimou seu uso nos EUA em 50% de todo material gráfico material produzido atualmente.


Mas nos anos 90, grupos de designers revolucionários de esquerda começaram a se rebelar com tamanha hegemonia, desenvolvendo uma arte visual independente do império de Helvetica, como David Carson, conhecido no Brasil pela proposta visual da revista Trip, ou Stefan Sagmeister, da Rolling Stones. Ou então, como Michael C. Place e Danny van den Dungen, passaram a adotar a fonte inserida em conceitos novos, menos dogmáticos, mais livres, sem acreditarem em um suposto “monstro da globalização” e uniformização estética mundial.

A frase mais engraçada, e que fecha a questão, fica por conta do suíço Manuel Krebs, que diz sem afetação: “se você não for um profissional de design, use Helvetica, em preto com fundo branco, vai ficar bom. Sempre.”

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

O metrô de Nova York

Senhoras e senhores leitores deste humilde blog, desculpa o incômodo. O senhor à direita na foto acima poderia estar roubando, mas não, esse senhor meio xexelento entrou na estação armado com aquele carrinho preto que está atrás dele, carregando aquilo sobre o qual está sentado, as duas caixa de som, um adidas falso e um gravador com as bases das músicas que ele, calmamente, sem pedir autorização, permissão ou atestado, começou a cantar. Nesta posição, sem se levantar, movendo apenas as mãozinhas e fechando os olhos sempre que a alma ameaçava lhe escapar, puxou alguns clássicos do Rythm and Blues, de Marvin Gaye para baixo, e eu confesso que só não chorei porque, bem, porque não cabia. Se alguém puxasse o coro, eu não me segurava.

Nova York é tão chique que até mendigo fala inglês (essa frase não cabia bem aqui, mas eu não podia perder a piada).

Fiquei ali esperando o Metrô, que demorava, e foi pintado um clima, enquanto mais gente chegava. Nos dez ou quinze minutos que o ouvi cantar, eu e outros dez depositamos um dólar naquele balde entre as caixas, quer dizer, o cara ganhou um dólar por minuto, o que dá sessenta por hora, quinhentos por dia, dois e quinhentos por semana, dez mil dólares por mês! Se eu tivesse feito essa conta na hora, pegava de volta o meu.

O metrô chegou, me acomodei. Dois rappers aborrecidos discutem em voz alta - rappers estão sempre de mau humor, até para contar piada. Um cartaz na parede diz, em inglês e espanhol: “No ano passado, 1.954 pessoas viram alguma coisa e disseram alguma coisa” – referindo-se a objetos suspeitos deixados em locais públicos – “Então, se você vir alguma coisa, diga alguma coisa”. Ao lado deste, um anúncio de uma universidade: “Sabe quem será seu professor?”, e o rosto de dois professores, um dos quais ganhador de um Oscar. À minha direita, uma gorda lê a história do judaísmo em russo, um senhor negro de gravata dormita e uma moça almoça frango com batatas fritas encharcadas em ketchup. Quem ipod, ouve música.

Algumas estações à frente, um grupo suspeito de adolescentes, na faixa de 11 a uns 14 anos, embarcou. Após Tremont, o Metrô entra num buraco negro, ninguém entra, ninguém sai, até mais ou menos a 145st, Harlem, e foi aí que eles atacaram. O mais velho falou alguma coisa em spanglish aos passageiros, e os quatro formaram uma cruz. Uma coisa começou a apitar – e eu pensei cá com minha pochete supersecreta: pronto; atentado terrorista, bem na minha vez. Ao comando do mais velho, os quatro bateram palma. Olhei em volta, ninguém dava a mínima, devem ter se acostumado com atentados, a gente se acostuma com tudo na vida... novo comando, duas palmas. Alguma coisa tá apitando! E então, eles ligaram um som, e uma música break começou a tocar, substituindo o apito, e os quatro encetaram uma dancinha ensaiada. O metrô estava cheio, veja bem, imagina, todas aquelas pessoas que se acumularam ouvindo o milionário do adidas falso estavam ali dentro! E então, um de cada vez, os garotos foram assumindo o centro da roda, e a fazer requebros break, e depois malabarismo – o mais novo, um neguinho esquálido, simplesmente deu um salto para trás, com o trem andando, depois um outro de rabo de cavalo e penugem no buço, um salto ainda mais espetacular, de lado, tudo ao comando do mais velho e da música que saía de algum lugar que eu não reparei, nem quis mais olhar – eu não estou aqui para ficar dando dólar para cada um que me aparece fingindo que é pobre e mexicano.

Passo horas dentro dos vagões do Metro, indo de um lado a outro da cidade ou voltando para o Bronx. Às vezes, é um carrinho com o bebê mais fofo brincando com a mãe, ou então está no colo do pai, tomando mamadeira e sacolejando. “Em Nova York, aja como um newyorker”, dizem meus guias, não dê atenção, seja indiferente, desvie o olhar. “Se você é brasileiro, seja forte neste momento”, pode estar o sujeito se auto-imolando, isso não é com você. Afinal, quem não tem seus problemas? Nas paredes, o anúncio de uma nova temporada do serial killer mais querido das Américas; ele está em close, é bonito e sorri, o lado direito do rosto todo respingado de sangue. Um hippie entra de bicicleta, uma dona leva um cachorro dentro de uma bolsa, dois japoneses falam alguma coisa sobre Basquiat, mas talvez “basquiat” signifique “pois é”, ou “azeitona”, vai saber.

Marcel Duchamp, artista francês sobre quem falarei mais em outra oportunidade, morou em Nova York entre 1915 e 1918 (depois voltaria para morar aqui, e aqui ficaria até morrer), e declarou em 1964: “Para um francês acostumado com distinções de classe, pude sentir o que uma democracia verdadeira era capaz de fazer. Pessoas que podiam dar-se ao luxo de ter motoristas iam ao teatro de metrô, coisas assim.” De fato, pode ser meio dia ou meia noite, não importa, estão todos ali, indiferentes entre si, calorosos com os seus, mas todos usam o Metrô. É quente, cheira mal, mas é relativamente limpo para um transporte centenário que ainda leva um bilhão de pessoas por ano para cima e para baixo, a 2 dólares a viagem.

Como a praia do carioca e a praça Castro Alves para o soteropolitano, o metrô de Nova York é do povo.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

O Anjo Exterminador

Pornographic Angel, pout-pourri de oito crônicas da série “A Vida Como Ela É”, de Nelson Rodrigues, está em cartaz no Ohio Theatre, Soho. Descobri por acaso e, curioso, fui assistir na quinta-feira, 20 de setembro (eu e a Lucia Guimarães, do Manhattan Connecction/GNT – chique né?)

Nelson Rodrigues me vem sempre que alguém me pergunta, no Rio de Janeiro, se eu não fui à praia no final de semana. Existe entre os cariocas, ainda hoje, um preconceito racial inconsciente contra pessoas muito brancas como eu, mas ela é passível de aceitação pela sociedade se freqüentar a praia. Na visão do carioca médio típico, uma pessoa muito branca e conformada, ou seja, que não toma sol para mudar sua infame situação, só pode ser uma pessoa infeliz. Porque, para o carioca, a praia representa tudo que há de bom na vida e ainda por cima é de graça, então eu não fico dando maiores satisfações, não fico dizendo que eu gosto de praia mas não tenho mais saco para ir porque preciso ficar me besuntando de filtro solar, enfurnado sob barracas ou de camisa - porque de nada adiantaria. Eu digo simplesmente que estou tratando um câncer de pele, e assim angario a solidariedade do carioca. Como o mineiro, Nelson e Otto Lara, o carioca só é solidário no câncer.

Mentira, o carioca também é solidário com as pessoas que, de dia, andam de carro com os faróis acesos. Experimente; todos os cariocas farão sinais angustiados, avisando-o de que seu farol está aceso, alguns quase se atiram sua tuas rodas...

Eu admiro muito os trabalhos de Nelson Rodrigues. A começar pelo seu profundo conhecimento dessa alma carioca, um tipo que, para resumir, separa o joio do trigo, mas gosta mesmo é de cultivar o joio. Nelson adorava explorar, no teatro ou nas suas crônicas para o jornal, a imagem que o carioca tem de si e faz questão de vender, contrapondo-as com as deformidades éticas que só costumam vir à tona por acidente, sendo esses acidentes seus turning points prediletos. Nas suas histórias, esposas perfeitas revelam-se lascivas, pais exemplares, incestuosos, médicos são pedófilos. Às vezes, nem mesmo a vizinhança fica sabendo por que fulana se suicidou, cicrana matou o marido ou beltrano fugiu de casa, mas o espectador sim, sabe exatamente o motivo, que geralmente é o mesmo: a inocência abalada.

Inocência é a palavra-chave do trabalho de Nelson Rodrigues, e não é à toa; trata-se de um patrimônio que as sociedades ocidentais modernas lutam para manter preservado, contra as investidas de demônios extra-sociais que as fustigam de forma incansável, procurando convencê-las dos prazeres indizíveis do conhecimento e da perdição, já que inocência é sinônimo de desconhecimento e, supostamente, pré-requisito para manutenção da ordem social. Tudo começou com Adão e Eva.

A inocência infantil é a mais óbvia delas; sua violação é algo que abala e emociona profundamente, brasileiros ou americanos, enquanto que nas sociedades que a aceitam melhor, como a japonesa, teoricamente não se obteria o mesmo efeito. A infância talvez seja o símbolo da inocência ideal, aquela da qual nos afastamos à medida que nos tornamos imperfeitos, isto é, envelhecemos, ou ainda uma reserva moral, o último bastião contra a danação total, cuja corrupção significaria o fim da nossa sociedade. Mas há, além da infância, ainda muitos inocentes que precisam ser preservados – o marido, que não deve saber das traições da esposa; a mulher feia, que não pode saber que o é; os vizinhos, que não aceitam pederastas.

Em O Nome da Rosa, Umberto Eco mostra como a inocência de monges precisou ser violentamente preservada contra uma literatura subversiva – satírica – para que não fossem maculados pela liberdade do riso, o que poderia contaminar o monastério e abalar hierarquias, minando assim a ordem. Nesse sentido, a defesa da inocência pode virar uma política de estado, e aí tornar-se extremamente fascista. Foi assim com a Inquisição, uma violenta reação da Igreja Romana aos que puseram em dúvida seus dogmas, e estaríamos vivendo agora uma era em que nossa sociedade ocidental é que aparece como o vilão, o diabo que acena com libertinagens para as sociedades puras muçulmanas, ao menos na visão de grupos fundamentalistas como a Al Qaeda.

Nelson Rodrigues não preserva inocentes nem pecadores, ao contrário, os expõe. Em seus trabalhos, a inocência está prestes a ruir a qualquer momento, e em muitos casos seu ponto de vista é justamente a fruta podre. Os demônios os espezinham, desejos reprimidos e obsessões atávicas os consomem de dentro para fora, e somos convidados a testemunhar sua luta inglória contra o imponderável, dia a dia, de forma cruel, até o acidente de sua revelação, ou libertação, caso queiram, e seguimos então acompanhando as mazelas provocadas por este momento, uma inocência em frangalhos e suas conseqüências, invariavelmente trágicas. Nelson, ao relatá-lo, age como quem tenta extrair do rosto uma espinha encravada, um dia mexendo, noutro remexendo, então enfiando a unha, em direções diferentes, irritando-nos com a exacerbação dos caracteres, bons e maus, expressões que se repetem, frases incompletas e um declarado apreço pelos desviados, tudo envolto num delicioso português de botequim dos anos 50.

A peça Pornographic Angel, que está em cartaz no SoHo até 30 de setembro, marca a estréia do Tantrum Theatre. Trabalhando em colaboração com a Lord Strange Company, formou-se aqui um curioso grupo intercontinental, com elenco, equipe técnica e produção composta de profissionais dos cinco continentes. A tradução coube a Alex Ladd, brasileiro radicado nos EUA há vinte anos; a direção, à Claudia Tatinge Nascimento, carioca de São Conrado. A proposta do grupo, inteligente, é dar ao público americano uma visão geral do trabalho do Nelson Rodrigues, e a estratégia foi apresentá-la na forma de uma colagem não linear e multimídia, contendo os principais conceitos manuseados pelo autor, principalmente sua atmosfera de quebra da inocência. Perde-se, com a compilação, um pouco da extensão do nosso autor, mas opção é louvável e compreensível, em se tratando de uma introdução.

O Ohio é um teatro que pode ser considerado pequeno – deve ter uns 50 lugares, pouco mais – mas o palco é grande, e complicado, com pé direito alto e seis colunas nas laterais. A direção procurou ocupar o espaço com a distribuição de personagens entrando e saindo, não de cena, mas do foco, apoiando-se em elementos cenográficos variados e recursos como vídeos e projeção de textos. Dependendo de um mau uso, essa dinâmica pode acabar atrapalhando ou mesmo derrubando um trabalho, mas esse não foi o caso aqui; o grupo demonstrou segurança e a peça, de 1h20, flui de maneira consistente e agradável. A despeito de tolices como “a intraduzibilidade de Nelson Rodrigues”, a peça expressa bem o autor em inglês, e o expressariam em qualquer outra língua, por exemplo, quando personagens fora de quadro ecoam frases ou palavras, dando vazão às suas famosas repetições, ou um manequim representa um marido que não fala com a esposa, o que é desesperador em Nelson e na peça. A história de Jacira, a mulher feia desprezada pelo marido, é particularmente dolorosa, a feiúra tendo sido obtida com simples lambuzar de batom e boa dose de dramaticidade de Sara Bremen. Uma laranja, cortada ao meio num golpe pelo marido traído pelo amigo, dá a acidez necessária à crônica original, e as músicas brasileiras antigas, cantadas em palco nas passagens de cena, o sotaque suficiente de tropicalidade. Os atores estão bem e seguros, demonstrando apenas algumas dificuldades naquelas habilidades que realmente, aí não tem jeito, só brasileiro é capaz, como sambar.

Em suma, o grupo, ao explorar o que há de mais universal em Nelson – na minha visão, a corrupção da inocência – cumpre importante e corajoso papel de divulgá-lo em palcos de Nova York. Não há motivos para que um autor desse calibre, não importa se brasileiro ou tailandês, seja tão pouco representado na Europa e nos Estados Unidos.

Get the whole thing

– Você tem seqüestros aí?

Fiz essa pergunta em três ou quatro lugares, incluindo o Lindy’s, onde eu fui atendido por uma boa senhora branquinha e polidamente americana, e a reação sempre foi “What?”, seguido de uma feição de pavor. Que diacho de lugar é esse, pensava eu, que não tem um simples seqüestro? Essa gente não limpa a boca? Eis que o Steve, o simpático pizzaiolo sérvio do Rocco’s, elucidou a questão: “Do you have kidnappings?” – disparei eu, mais uma vez; “you mean, napkins?”, disse ele, compreensivo, me apontando os guardanapos.

Este Steve, cujo nome desconfio ser uma adaptação ao gosto americano (sérvio chamado Steve?) é do Kosovo, aquele lugar sobre o qual não sei absolutamente nada mas que esteve envolvido numa guerra monstruosa em que militantes de uma facção, a título de limpeza racial, seqüestraram e estupraram mulheres, muitas vezes vizinhas de rua com quem compartilharam a infância, simplesmente por serem de outra nacionalidade ou religião – entre outras indizíveis barbaridades. Não sei qual foi a participação do Steve nessa história, e qualquer que tenha sido, terá sido dramática, o fato é que ele e seu sócio são muito divertidos, e sua pizzaria é desses lugares em que as senhoras solitárias do Bronx se sentam, em busca não só de um slice de pizza bom e barato, mas principalmente de alguma risada.

Pois bem, foi esse sérvio quem deu o tom de minha viagem a NY. Ele tirava do forno uma pizza fechada, do tamanho e formato de uma vitória-régia madura, cheirosa e estalando de quente, e eu parado em frente ao balcão aguardando ser atendido. “Next!”, ele gritou, foi a deixa para eu perguntar sobre o que havia dentro daquela massaroca. Steve empurrou seu bonezinho para trás e coçou a cabeça, esboçou um well, e começou a arrolar tudo que ali havia de bom e gorduroso. No quinto ou sexto ingrediente, e eu já não lembrava do primeiro, me entreguei: “Forget, just give me...”, ao que Steve agradeceu, levantando os braços:

– Yeah, man. Get the whole thing!

“Get the whole thing” tem sido, desde então, o lema dessa minha viagem. Eu trouxe tudo para fazer uma abordagem perfeita a Nova York: três guias sobre a cidade, dicionário, laptop, câmera fotográfica, uma pochete super-secreta que fica secretamente aderida à barriga sob a cueca, cinto e calça, entre o umbigo e os pentelhos, para guardar o passaporte e notas altas, e aqui ainda obtive outros mapas, guarda-chuva, jornais com a programação cultural, enfim tudo o que há de mais moderno em matéria de tecnologia da informação e mais antigo em questão de segurança.

Não demorou para eu perceber que não ia funcionar. Um bom exemplo disso foi minha ida à agência do Banco do Brasil em Manhattan. O NYBG, que está financiando a viagem, pretendia me dar um cheque, mas nem eu nem eles sabíamos se bancos brasileiros aceitam um cheque americano. Mandei um email para o banco, e eles responderam dizendo que sim, seria possível através de uma ordem de pagamento e sei lá mais o que, então resolvi checar pessoalmente.

Lá fui eu, montado: boné na cabeça, óculos de leitura no bolso da camisa, a mochila com livros, dicionário e guarda-chuva no peito, cigarros e óculos escuros estrategicamente acessíveis no zíper da frente, máquina fotográfica perpassando a mochila, uma carteira com dinheiro miúdo e cartões no bolso direito da calça, chaves de casa no esquerdo, mapa do metrô no bolso traseiro esquerdo, aquela pochete secretamente escondida naquela inominável local do corpo, ficando portanto livre o bolso traseiro direito para qualquer eventualidade.

A agência do Banco do Brasil fica na 48th Street, entre as 5ª e 6ª avenidas, número 600, terceiro andar. Falando assim, parece muito simples. Para quem chega, não é nada simples. Primeiro você precisa saber qual a linha de Metrô passa perto de você (são 26 linhas), e se essa linha passa perto do endereço que você procura, caso contrário, serão necessárias conexões, e então descobrir que acesso ao Metrô deve-se entrar, pois as entradas dependem da linha, e mesmo em entradas certas há que se prestar atenção se estão em operação – antes de descer as escadas, há bolas que podem ser verdes ou vermelhas, as verdes significando que está em operação, vermelhas caso contrário. A parte do Bronx onde estou hospedado é servida principalmente pela linha D, que por sorte é uma boa linha, pois corta Manhattan de norte a sul, mas dependendo da situação – isto é, se for hora do rush, às terças e quartas e sábados, se não estiver chovendo e/ou não for dia de Saint Patrick, coisas assim – também me serve a linha B. Na dúvida, me disse Emily, tome sempre a linha D!

A agência fica num dos prédios do Rockfeller Center, com uns 700 andares sei lá eu, num dos quarteirões mais suntuosos de Manhattan. Para entrar no prédio, passa-se por uma daquelas portas giratórias lindas e douradas que só vemos em filmes, e deve se dirigir a uns dos guardas impecáveis na elegante portaria. Contei-lhe toda a minha vida, cheque, banco, Brasil, tudo que pudesse ajudar, mas ele ficou olhando para mim sem demonstrar nenhuma piedade. De alguma forma, compreendeu que eu precisava ir ao terceiro andar, e para tal só precisava de uma coisa da minha pessoa:

– Passport.

Diante da humilhação a que me expus para chegar ao documento, o segurança demonstrou, enfim, algum esgar de comoção.

Hoje sou outro. Saio de casa apenas com algum dinheiro, cartões, um único mapa, meus óculos e, às vezes, a câmera. Que se dane se chover, que se dane a história de cada casinha de Manhattan, se não entendem meu inglês, paciência. Escolho um foco – um museu, uma loja, um cinema – e ando sem rumo ao redor, parando onde me dá na telha, ou seja, getting the whole thing! Ainda uso a pochete, até porque ela modela minha barriga... Ah, bancos brasileiros não aceitam cheques americanos.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Little Brazil

Passeei pela rua Little Brazil. Sim, nós temos nossa própria rua aqui em Nova York – a que seria a 46th street, leste. O ponto é bom, mas para ser sincero, tem mais restaurante chinês que brasileiro. Há uma loja de biquínis, um dos poucos produtos genuinamente brasileiros cobiçado no exterior, mas fora isso, nossa participação no comércio de rua, nesta e em toda Manhattan, é tímido. Sucesso brasileiro de público e crítica são os serviços, de depilação (brazilian wax, anuncia até nas rádios), que vêm a reboque de outro grande sucesso internacional: os salões de cabeleireiros e manicures.

Segundo Maxine Margolis, autora do livro “Little Brazil, na Ethnography of Brazilian Immigrants in New York City”, os brasileiros novaiorquinos são imigrantes dos anos 80 que se estabeleceram primariamente em Astoria, no Queens, mas em seguida também em outros bairros do subúrbio, afastados uns dos outros. Com uma população estimada em 150.000, os brasileiros não formaram comunidades em Nova York, pois, ao contrário de outros imigrantes estrangeiros, não pretendiam ficar; o objetivo era ganhar dinheiro e retornar para o Brasil. De fato, ouve-se nosso português “levemente anasalado”, conforme o descreve Margolis, em todos os bairros, mas não se há clubes, manifestações coletivas, encontros ou coisas do tipo, embora a festa da independência da Little Brazil esteja em franca ascensão. Eu não estava aqui para ver a desse ano

Mas a arte brasileira, e em muitas de suas expressões, com esta me deparei algumas vezes, todas sem querer. O artista plástico Tunga, por exemplo, expõe no P.S.1 (ver www.ps1.org/ps1_site/content/view/267/102/), um centro de arte contemporânea do Queens tão bacana que acabou sendo incorporado ao MoMA. Depois falo mais sobre ele, pois pretendo ir lá. O documentário Manda Bala, rodado em São Paulo e ganhador do melhor documentário do Sundance Film Festival 2007, também está em cartaz (ver resenha do New York Times em movies.nytimes.com/movie/381465/Manda-Bala/overview). Falando em cinema, o New York Film Festival, que começa em 28 de setembro, faz uma retrospectiva sobre Joaquim Pedro de Andrade, trazendo sua obra completa (Macunaíma, Garrincha, etc.) – veja mais em filmlinc.com.

E outro dia estava eu passeando no Soho, quando me deparei com um cartaz, propaganda de uma peça que estava para começar ali mesmo chamada Pornographic Angel (www.pornographicangel.com), baseada em histórias de um tal... Nelson Rodrigues! Segundo o New York Times – dizia o cartaz – se ele (Nelson) tivesse escrito em inglês, seria “tão importante, quanto Tennessee Willians, Eugene O’Neill ou Harold Pinter, tal universal, atemporal e subversiva é a qualidade de seu trabalho”. Ontem eu fui assistir à peça, conto numa próxima postagem.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

O valor da arte

Fui ao cinema, no Angelika Film Center, que fica no East Village. É um dos cinema dos moderninhos de NY. Fui assistir, sem saber do que se tratava (coisa que adoro fazer, às vezes dá certo, às vezes dá errado), ao filme The Rape of Europa (therapeofeuropa.com), e só quando começou que eu soube que era um documentário. Saí estarrecido.

O filme narra a trajetória do Nazismo e da Segunda Guerra na Europa, e os problemas, entre tantos outros, que isso representou para as peças de arte e religiosas. Hitler, que tentou ser artista em certo momento de sua vida, havia traçado um plano sinistro – mais um, e como sempre ambicioso e delirante - de construir a maior coleção para o maior museu da história, a ser projetado por seu arquiteto Speer, literalmente roubando as grandes obras de arte dos países que pretendia conquistar, obras que, na sua visão, fossem significativas para a raça ariana, destruindo o resto que considerasse inferior – obras, museus e igrejas. Ao anexar a Áustria, começou a fazê-lo com as obras de Gustav Klint; quando invadiu a Polônia, retirou as imagens sagradas da secular igreja de Varsóvia, principal símbolo da cidade, colocando-a abaixo em seguida, com o objetivo de humilhar a memória do povo polonês. Terrificadas, França e Rússia iniciaram incríveis esforços de encaixotar e retirar todas as obras – pinturas, painéis imensos, esculturas muitas vezes gigantescas, vasos, tudo! - dos museus nacionais do Louvre e do Hermitage, em São Petersburgo, escondendo-as em Castelos no sul da França e na Sibéria, enquanto seus cidadãos fugiam desesperados e seus exércitos se preparavam para o pior. Tudo isto é retratado com fotos, filmes da época e depoimentos de sobreviventes ou descendentes dos personagens envolvidos. À medida que os aliados começam a virar o jogo, são os alemães que passam a esconder as obras, às vezes às pressas, ou pior, usar prédios históricos como escudos contra bombardeios. O documentário mostra, por exemplo, um grande erro dos aliados, ao decidir pela destruição de Monte Casino, um mosteiro medieval na Itália que não abrigava um só alemão, apenas moradores da região e monges – os alemães estavam em volta. Em Piza, onde também foi destruído um castelo, até hoje estão sendo remontados, com os milhares de cacos encontrados nos escombros, os afrescos que cobriam suas paredes. Outra cena estarrecedora são as fotos e depoimentos de uma velhinha italiana sobre a explosão de algumas pontes em Florença, uma deles projetada por Michelangelo, por parte dos nazistas que batiam em retirada, acuados pelos aliados. E depois da guerra, ainda era preciso restaurar e devolver tudo aos seus donos, o que continua sendo feito até hoje por pessoas dedicadas a tal.

Uma questão que permeia o documentário é a importância de salvar obras de arte versus vidas humanas. Mas um dos depoentes, um professor polonês, de certa forma é quem melhor desfaz a dualidade. Uma vez indagado por alunos, por que a igreja de Varsóvia devia ser reconstruída, sua resposta era “pelos mesmos motivos que a destruíram”. A igreja era um símbolo do povo polonês.

NY: Quatro séculos de história em uma postagem

Passando uma temporada em Nova York, a cidade dita “como nenhuma outra”, “inesgotável” ou “a mais cosmopolita do mundo”, nota-se o quanto ela deve à sorte de ter acolhido gente de todos os continentes. Com seus 8 milhões de habitantes e cerca de 18,7 milhões de habitantes na sua área metropolitana, a região onde se encontra é a segunda mais populosa da América do Norte, sendo superada apenas pela Cidade do México. Quase a metade dos habitantes não tem o inglês como língua mãe, e 20% mal falam o inglês. A convivência mais ou menos harmônica de culturas aqui é diferente da brasileira, onde ocorreu uma considerável miscigenação dos povos; em Nova York as culturas não parecem ter se misturado, e sim formado redes de relacionamento que mantiveram preservadas suas identidades, na medida do possível. Assim, enquanto sérvios servem pizza, judeus ortodoxos vendem calcinhas. Conhecer a história de Nova York ajuda, portanto, a entendê-la melhor.

Em 1624, um grupo de assentadores da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais chegou à Manhattan (“Manahata” no original indígena, ou Ilha das Colinas), estabelecendo entreposto comercial no sul da ilha. O norte da região era colonizado por ingleses (New England), e para defender seu território, o governador Peter Stuyvesant ergueu, em 1653, o muro que explica o “wall” de Wall Street.

A prosperidade econômica da região começou a atrair imigrantes espanhóis e judeus e africanos. Em 1654, chegam os primeiros judeus, expulsos de Portugal. Dirigiam-se, na verdade, para o Recife, onde já estavam os holandeses e que, sendo protestantes, toleravam-nos. Mas os holandeses haviam sido expulsos do Brasil, então os mal-informados judeus não puderam sequer desembarcar. Famintos e espoliados por piratas, apenas os sobreviventes chegaram em Nieuw Amsterdan, onde foram recebidos de braços abertos. Mas a prosperidade também atraiu a cobiça. Entre 1652 e 1674, pelo menos três guerras pelo controle da cidade foram travadas entre Países Baixos e Inglaterra, que acabou finalmente tomando-a e rebatizando-a como Nova York em homenagem a James, Duque de York.

A cidade cresceu rapidamente sob controle inglês. Em 1700, a cidade possuía uma população de sete mil habitantes, e ruas e estruturas cobriam a parte inferior de Manhattan. Surgem os primeiros jornais e faculdades, as primeiras questões relativas à liberdade de expressão e, com elas, os primeiros movimentos subversivos. Em 1765, comerciantes juntaram-se no centro na cidade, protestando contra novos impostos criados pelos britânicos; em 1770, habitantes da cidade enfrentaram soldados britânicos, tendo uma pessoa morrido em combate. Em 1776, George Washigton lê a Declaração de Independência para uma tropa que representaria Nova York na luta das 13 Colônias pela independência da Inglaterra, fato concretizado em 1789. Washigton é seu primeiro presidente, tomando posse na cidade que viria a ser a sede provisória do novo país por um ano (passando então para Filadélfia).

Por volta de 1800, Nova York tinha cerca de 60 mil habitantes, e já era a maior cidade dos Estados Unidos. Em 1811, a municipalidade de Nova York, buscando melhor planejar o crescimento da cidade, que até então crescera desordenamente, decidiu que toda via pública construída teria que correr em linhas paralelas, num sentido norte-sul (avenidas) ou leste-oeste (ruas). O Canal de Erie, aberto em 1825, permitiu acesso dos Grandes Lagos ao Oceano Atlântico, e Nova York consolidou-se então como o principal centro portuário norte-americano, ultrapassando a cidade de Montreal. Em decorrência, um número crescente de bancos e companhias financeiras escolheram a cidade como sede, contribuindo para seu o rápido crescimento.

Nova York tornara-se a terra das oportunidades, atraindo os imigrantes europeus. Entre 1880 e 1930, 12 milhões de imigrantes europeus entraram na América por Manhattan, em busca de uma vida melhor. Até o final do século XIX, a maioria era procedente da Alemanha, Irlanda, Inglaterra, Suécia, Noruega ou Dinamarca, mas após 1890, principalmente italianos e judeus. A miséria encorajou sicilianos e napolitanos a criarem a Little Italy, logo acima do distrito mais antigo; dois milhões de Judeus, fugindo dessa vez de perseguições na Rússia, criaram suas próprias comunidades no Lower East Side.

A construção de inúmeras pontes e de um eficiente sistema de metrô, conectando Nova York com os subúrbios (Bronx, Queens, Brooklyn), facilitou a locomoção de pessoas e veículos ao longo da cidade. Como consequência, muitos habitantes abandonaram Manhattan, movendo-se para outras regiões. A ilha, porém, continuou como seu distrito mais poderoso, e um dos principais centros financeiros do mundo. Por volta de 1905, a importância de Nova York no cenário da economia mundial havia ultrapassado àquela de Londres. Surgem os primeiros milionários da história mundial, consolida-se um estilo de vida, e contra ele o primeiro atentado terrorista, em setembro de 1920 (falo mais sobre isso quando der).

Em 1930, já com mais de sete milhões de habitantes, Nova York foi atingida pela Grande Depressão. Para resolver os grandes problemas socio-econômicos, grandes estruturas, como pontes e prédios foram construídos. Houve também uma corrida, pela construção do prédio mais alto na cidade, que resultou nos grandes arranha-céus como o Chrysler Building e o Empire State Building.

Após a Segunda Guerra Mundial, Nova York seria afetada por inúmeros problemas, basicamente decorrentes da pressão demográfica - poluição do ar e da água, congestionamentos nas vias e no sistema de transporte público, favelização, alta taxa de criminalidade, conflitos raciais, desabastecimento de energia, desemprego, emigração de sua classe média – que só viriam a ser contornados na década de 90, quando passou de uma metrópole em decadência para uma cidade global em plena revitalização, em boa parte ao investir no turismo como solução para geração de novos postos de trabalho e inibir as zonas de tensão.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

NYBG, a missão

Ao me deparar com o prédio que abriga a Mertz Library, a primeira sensação que tive do Jardim Botânico de Nova York foi de solidez. Trata-se de um castelo neo-clássico de beleza acachapante, no estilo Beaux-art, finalizado em 1899 mas recentemente restaurado e adaptado para abrigar espaços de exibição, novas áreas de trabalho e um laboratório de digitalização de imagens.

Solidez parece ser uma palavra apropriada não só para o prédio, mas para a instituição como um todo. O New York Botanical Garden, doravante NYBG, foi um dos primeiros jardins botânicos criados nos EUA (1891), ocupando uma área de 96 ha, 20 dos quais conservam intactas florestas nativas. Reúne 50 jardins, exibições de plantas e coleções vivas diferentes, sua biblioteca tem um acervo de 50.000 livros sobre botânica e ciências afins, seu herbário, 7 milhões de espécimes. Oferece, anualmente, 900 cursos para milhares de adultos, crianças e professores, o maior e mais diversificado programa de educação continuada sobre o manejo de plantas, jardinagem, horticultura e paisagismo do mundo. Com 100 anos de estudos sobre a flora de várias regiões e ecossistemas do globo, é uma das instituições mais tradicionais e atuantes na pesquisa botânica, e continua investindo em conhecimento e novas tecnologias - em 2006, por exemplo, inaugurou o Pfizer Plant Research Laboratory, dedicado ao estudo de genoma de plantas e à sistemática molecular, e tem este nome não por pertencer ao Laboratório Farmacêutico, mas em homenagem ao maior doador privado. Chamo atenção para esse detalhe, pois é aqui que se observa uma grande diferença entre a cultura americana e brasileira no que se refere a recursos financeiros.

Várias “coisas” que existem no NYBG tem o nome associado a uma pessoa. Embora, como no Brasil, haja homenagens a grandes nomes da ciência, principalmente americana (no JBRJ, a Biblioteca é Barbosa Rodrigues, o Herbário é Dimitri Sucre etc.), aqui é comum o nome associado à “coisa” ser uma pessoa que contribuiu com a maior parte dos recursos para sua criação ou desenvolvimento. Essa coisa pode ser um prédio inteiro, um setor, um projeto, uma exposição, um banco de praça, uma árvore ou uma lata de lixo. Em todo canto, há uma placa com o nome de financiadores, e eles estão às claras, são exibidos sem cerimônia – pelo contrário, quase sempre têm maior destaque do que autoridades, prefeitos ou presidentes. O doador demonstra assim seu amor por uma instituição ou cidade, ao mesmo tempo que eterniza seu nome em uma espécie de marketing social permanente.

Embora para os brasileiros, seja abominável a idéia de se ter, digamos, um “Laboratório Moreira Salles de Fitogeografia” dentro de seu jardim botânico, isto seria comum aqui e, pelo que sei, nos EUA como um todo. O banqueiro J. P. Morgan, por exemplo, ao morrer em 1913, deixou U$250 milhões para que fosse criada, entre outras coisas, a Pierport Morgan Library, no centro de Manhattan, descrita como a mais bela coleção de manuscritos medievais do mundo. Nós brasileiros não podemos aceitar que instituições públicas recebam o dinheiro, digamos, imundo de um banco burguês-capitalista-selvagem; doações aceitáveis são apenas aquelas que vêm do governo, o suado e surrado dinheiro público. E quanto aos nossos bancos burgueses-capitalistas brasileiros, por sua vez, raramente lhes passa pela cabeça financiar um Laboratório de Fitogeografia, que não dá retorno e mal serve como marketing, já que nem o banco nem ninguém mais sabe para que serve – provavelmente outra bobagem de cientistas malucos brincando de misturar produtos químicos. Tais bancos ou congêneres preferem não arriscar, é mais seguro criar suas fundações com o propósito de absorver os recursos que iriam para o imposto de renda – mais uma vez nosso querido dinheiro público – contando para tal com o auxílio luxuoso das leis de incentivo à cultura, criadas pelo próprio governo. Aliás, já que a política é esta, que se criassem ao menos leis de incentivo à ciência, pois projetos de cunho estritamente científico – como o de informatização do herbário do JBRJ – precisam fazer contorcionismos muitas vezes delirantes para se candidatarem às benesses de leis como a Rouanet.
Em resumo, filantropia é a palavra mágica que explica, em boa parte, a solidez de instituições como o NYBG no hemisfério norte. Claro, para aceitá-la no coração é preciso não pensar como foi que J. P. Morgan, 100 anos atrás, conseguiu deixar U$250 milhões em conta corrente, quantas almas ele terá extorquido, quantos miseráveis corrompido, quanta usura praticado... é preciso ter a esperança de que nada disso é necessário para se acumular renda.

Doações não são, obviamente, a única fonte de renda do NYBG. Há também o programa de adesão de sócios, similar aos “amigos do Jardim Botânico” do Rio, e a bilheteria proveniente dos ingressos, e talvez ainda outras fontes, sobre as quais eu ainda não tenho dados, mas procurarei obter.

Não basta, no entanto, obter recursos financeiros, é preciso fazer por merecê-lo, ou seja, saber aplicá-los, para que ele renda frutos. No caso de um jardim botânico, aplicar bem os recursos captados significa, antes de tudo, ter bem definida uma missão, e persegui-la com afinco. Tentarei extrair do que vejo e ouço no NYBG qual o papel que a instituição reservou para si, e como age para cumpri-lo.