segunda-feira, 24 de setembro de 2007

O Anjo Exterminador

Pornographic Angel, pout-pourri de oito crônicas da série “A Vida Como Ela É”, de Nelson Rodrigues, está em cartaz no Ohio Theatre, Soho. Descobri por acaso e, curioso, fui assistir na quinta-feira, 20 de setembro (eu e a Lucia Guimarães, do Manhattan Connecction/GNT – chique né?)

Nelson Rodrigues me vem sempre que alguém me pergunta, no Rio de Janeiro, se eu não fui à praia no final de semana. Existe entre os cariocas, ainda hoje, um preconceito racial inconsciente contra pessoas muito brancas como eu, mas ela é passível de aceitação pela sociedade se freqüentar a praia. Na visão do carioca médio típico, uma pessoa muito branca e conformada, ou seja, que não toma sol para mudar sua infame situação, só pode ser uma pessoa infeliz. Porque, para o carioca, a praia representa tudo que há de bom na vida e ainda por cima é de graça, então eu não fico dando maiores satisfações, não fico dizendo que eu gosto de praia mas não tenho mais saco para ir porque preciso ficar me besuntando de filtro solar, enfurnado sob barracas ou de camisa - porque de nada adiantaria. Eu digo simplesmente que estou tratando um câncer de pele, e assim angario a solidariedade do carioca. Como o mineiro, Nelson e Otto Lara, o carioca só é solidário no câncer.

Mentira, o carioca também é solidário com as pessoas que, de dia, andam de carro com os faróis acesos. Experimente; todos os cariocas farão sinais angustiados, avisando-o de que seu farol está aceso, alguns quase se atiram sua tuas rodas...

Eu admiro muito os trabalhos de Nelson Rodrigues. A começar pelo seu profundo conhecimento dessa alma carioca, um tipo que, para resumir, separa o joio do trigo, mas gosta mesmo é de cultivar o joio. Nelson adorava explorar, no teatro ou nas suas crônicas para o jornal, a imagem que o carioca tem de si e faz questão de vender, contrapondo-as com as deformidades éticas que só costumam vir à tona por acidente, sendo esses acidentes seus turning points prediletos. Nas suas histórias, esposas perfeitas revelam-se lascivas, pais exemplares, incestuosos, médicos são pedófilos. Às vezes, nem mesmo a vizinhança fica sabendo por que fulana se suicidou, cicrana matou o marido ou beltrano fugiu de casa, mas o espectador sim, sabe exatamente o motivo, que geralmente é o mesmo: a inocência abalada.

Inocência é a palavra-chave do trabalho de Nelson Rodrigues, e não é à toa; trata-se de um patrimônio que as sociedades ocidentais modernas lutam para manter preservado, contra as investidas de demônios extra-sociais que as fustigam de forma incansável, procurando convencê-las dos prazeres indizíveis do conhecimento e da perdição, já que inocência é sinônimo de desconhecimento e, supostamente, pré-requisito para manutenção da ordem social. Tudo começou com Adão e Eva.

A inocência infantil é a mais óbvia delas; sua violação é algo que abala e emociona profundamente, brasileiros ou americanos, enquanto que nas sociedades que a aceitam melhor, como a japonesa, teoricamente não se obteria o mesmo efeito. A infância talvez seja o símbolo da inocência ideal, aquela da qual nos afastamos à medida que nos tornamos imperfeitos, isto é, envelhecemos, ou ainda uma reserva moral, o último bastião contra a danação total, cuja corrupção significaria o fim da nossa sociedade. Mas há, além da infância, ainda muitos inocentes que precisam ser preservados – o marido, que não deve saber das traições da esposa; a mulher feia, que não pode saber que o é; os vizinhos, que não aceitam pederastas.

Em O Nome da Rosa, Umberto Eco mostra como a inocência de monges precisou ser violentamente preservada contra uma literatura subversiva – satírica – para que não fossem maculados pela liberdade do riso, o que poderia contaminar o monastério e abalar hierarquias, minando assim a ordem. Nesse sentido, a defesa da inocência pode virar uma política de estado, e aí tornar-se extremamente fascista. Foi assim com a Inquisição, uma violenta reação da Igreja Romana aos que puseram em dúvida seus dogmas, e estaríamos vivendo agora uma era em que nossa sociedade ocidental é que aparece como o vilão, o diabo que acena com libertinagens para as sociedades puras muçulmanas, ao menos na visão de grupos fundamentalistas como a Al Qaeda.

Nelson Rodrigues não preserva inocentes nem pecadores, ao contrário, os expõe. Em seus trabalhos, a inocência está prestes a ruir a qualquer momento, e em muitos casos seu ponto de vista é justamente a fruta podre. Os demônios os espezinham, desejos reprimidos e obsessões atávicas os consomem de dentro para fora, e somos convidados a testemunhar sua luta inglória contra o imponderável, dia a dia, de forma cruel, até o acidente de sua revelação, ou libertação, caso queiram, e seguimos então acompanhando as mazelas provocadas por este momento, uma inocência em frangalhos e suas conseqüências, invariavelmente trágicas. Nelson, ao relatá-lo, age como quem tenta extrair do rosto uma espinha encravada, um dia mexendo, noutro remexendo, então enfiando a unha, em direções diferentes, irritando-nos com a exacerbação dos caracteres, bons e maus, expressões que se repetem, frases incompletas e um declarado apreço pelos desviados, tudo envolto num delicioso português de botequim dos anos 50.

A peça Pornographic Angel, que está em cartaz no SoHo até 30 de setembro, marca a estréia do Tantrum Theatre. Trabalhando em colaboração com a Lord Strange Company, formou-se aqui um curioso grupo intercontinental, com elenco, equipe técnica e produção composta de profissionais dos cinco continentes. A tradução coube a Alex Ladd, brasileiro radicado nos EUA há vinte anos; a direção, à Claudia Tatinge Nascimento, carioca de São Conrado. A proposta do grupo, inteligente, é dar ao público americano uma visão geral do trabalho do Nelson Rodrigues, e a estratégia foi apresentá-la na forma de uma colagem não linear e multimídia, contendo os principais conceitos manuseados pelo autor, principalmente sua atmosfera de quebra da inocência. Perde-se, com a compilação, um pouco da extensão do nosso autor, mas opção é louvável e compreensível, em se tratando de uma introdução.

O Ohio é um teatro que pode ser considerado pequeno – deve ter uns 50 lugares, pouco mais – mas o palco é grande, e complicado, com pé direito alto e seis colunas nas laterais. A direção procurou ocupar o espaço com a distribuição de personagens entrando e saindo, não de cena, mas do foco, apoiando-se em elementos cenográficos variados e recursos como vídeos e projeção de textos. Dependendo de um mau uso, essa dinâmica pode acabar atrapalhando ou mesmo derrubando um trabalho, mas esse não foi o caso aqui; o grupo demonstrou segurança e a peça, de 1h20, flui de maneira consistente e agradável. A despeito de tolices como “a intraduzibilidade de Nelson Rodrigues”, a peça expressa bem o autor em inglês, e o expressariam em qualquer outra língua, por exemplo, quando personagens fora de quadro ecoam frases ou palavras, dando vazão às suas famosas repetições, ou um manequim representa um marido que não fala com a esposa, o que é desesperador em Nelson e na peça. A história de Jacira, a mulher feia desprezada pelo marido, é particularmente dolorosa, a feiúra tendo sido obtida com simples lambuzar de batom e boa dose de dramaticidade de Sara Bremen. Uma laranja, cortada ao meio num golpe pelo marido traído pelo amigo, dá a acidez necessária à crônica original, e as músicas brasileiras antigas, cantadas em palco nas passagens de cena, o sotaque suficiente de tropicalidade. Os atores estão bem e seguros, demonstrando apenas algumas dificuldades naquelas habilidades que realmente, aí não tem jeito, só brasileiro é capaz, como sambar.

Em suma, o grupo, ao explorar o que há de mais universal em Nelson – na minha visão, a corrupção da inocência – cumpre importante e corajoso papel de divulgá-lo em palcos de Nova York. Não há motivos para que um autor desse calibre, não importa se brasileiro ou tailandês, seja tão pouco representado na Europa e nos Estados Unidos.

3 comentários:

Claudia Tojek disse...

A Bia tentou fazer um comentario mas parece que se cadastrar no google e mais dificil que abrir conta em banco.
Beijos!

RPD disse...

Só vc pra ir pra NY ver Nelson Rodrigues! Dá-lhe! Imagino o que vc falou com a Lucia...

RPD disse...

E a alusão ao Anjo Exterminador (Bunhuel)? Vc afinal conseguiu sair?