quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Helvetica!

Helvetica, a fonte, faz 50 anos em 2007.

Para quem não é iniciado no mundo do design, uma fonte é uma tipografia, um conjunto das letras e números que seguem um mesmo conceito visual, um estilo, que inclui desde a presença ou não de serifas (aquele pezinho embaixo do “t” ou à direita do “a”), a qualidade das curvas, o espaço entre as letras, todo uma gama de frescuras que fazem uma incrível diferença (tenho que perguntar aos meus amigos designers qual é a correta definição do que seja uma fonte).

A figura acima mostra algumas letras escritas nessa fonte chamada Helvetica. Repare o leitor alguns aspectos importantes sobre ela: primeiro, pode ser na versão mais gorda (bold, negrito) ou mais magra (light, thin), inclinada (italic) ou não, que ela não perde seu conceito; segundo, é uma fonte elegante, leve, agradável, simples e limpa (clean), que faz até kunstgewerbeschule parecer frugal. De fato, se você escrever algo como “Não pise na grama” com Helvetica, não é sequer necessário finalizar com “por favor”, pois a polidez da fonte já o traz em si. Olhando assim, para essa aparente candura, quem diria que Helvetica é por muitos considerada uma ferramenta subliminar cruel para massificação da globalização imperialista ocidental?

Tudo isso está no documentário Helvetica, do diretor americano Gary Hustwit (http://www.helveticafilm.com), a que assisti no IFC Center – outro dos cinemas para os novaiorquinos inteligentes. Não preciso dizer, o filme é delicioso.

Começa contando sobre o projeto da fonte por seus dois criadores, Max Miedinger e Eduard Hoffmann, em 1957, para a empresa de tipografia Haas Type Foundry, em Münchenstein, Suíça. O lugar onde ambos a desenvolveram está lá até hoje, claro. Naqueles anos, o design europeu vinha atualizando antigas fontes não-serifadas, como a alemã Akzidenz Grotesk, e o filho do Hoffmann nos mostra os registros das considerações de seu pai, funcionário da Haas, sobre a tipologia imaginada Miedinger, designer freelancer contratado pela empresa para tal. A fonte foi chamada inicialmente Neue Haas Grotesk, um nome que, com razão, seria considerado inapropriado para o mercado internacional (leia-se americano), então mudaram para Helvetia – que é a versão em latim para “Suíça” – e finalmente Helvetica.

Aproveitando-se de uma onda de popularidade do design suíço, Helvetica pegou. Começou a aparecer em logotipos de grandes empresas (Jeep, Lufthansa, Microsoft, Panasonic, Adidas), e o documentário entrevista alguns dos grandes designers da época, ainda em atividade, como o italiano Massimo Vignelli, criador da marca da American Airlines e de toda a programação visual do Metrô de Nova York, usando sempre Helvetica. Na opinião dele, não haveria motivos para usar outra fonte, já que Helvetica é perfeita para todos os propósitos. Segundo essa corrente, o que importa para a comunicação é a mensagem, portanto a tipologia deve ser neutra, além de elegante, e não “falar por si” ou chamar a atenção para si.

A influência de Massimo e outros designers famosos acabou transformando a fonte numa moda, quase uma sugestão, que se espalhou no mundo, e se agravou quando, em 1984, os computadores Apple Macintosh adotaram Helvetica como sua fonte padrão (default), e a partir daí, tornou-se tão comum aos olhos ocidentais que parecia ter sido criada por Deus. O documentário percorre sete países (Estados Unidos, Inglaterra, Holanda, Alemanha, Suíça, França e Bélgica) e entrevista dezenas de designers escritórios (além de Masimo, Erik Spiekermann, Matthew Carter, Wim Crouwel, Hermann Zapf, Neville Brody, Stefan Sagmeister, Michael Bierut, David Carson, Paula Scher, Jonathan Hoefler, Tobias Frere-Jones, Experimental Jetset, Michael C. Place, Norm, Alfred Hoffmann, Mike Parker, Bruno Steinert, Otmar Hoefer, Leslie Savan, Rick Poynor, Lars Müller, entre outros), mostrando sua predominância na comunicação visual urbana, desde out-doors a cartazes, folders e mensagems como “Puxe” ou “Empurre” portas, indicando que profissionais e amadores a utilizam quase sem pensar, ou mesmo quando pensam – a qualidade da fonte pesa até para aqueles que tentam fugir dela, como Eric Spiekermann. Paula Scher (NY) estimou seu uso nos EUA em 50% de todo material gráfico material produzido atualmente.


Mas nos anos 90, grupos de designers revolucionários de esquerda começaram a se rebelar com tamanha hegemonia, desenvolvendo uma arte visual independente do império de Helvetica, como David Carson, conhecido no Brasil pela proposta visual da revista Trip, ou Stefan Sagmeister, da Rolling Stones. Ou então, como Michael C. Place e Danny van den Dungen, passaram a adotar a fonte inserida em conceitos novos, menos dogmáticos, mais livres, sem acreditarem em um suposto “monstro da globalização” e uniformização estética mundial.

A frase mais engraçada, e que fecha a questão, fica por conta do suíço Manuel Krebs, que diz sem afetação: “se você não for um profissional de design, use Helvetica, em preto com fundo branco, vai ficar bom. Sempre.”

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

O metrô de Nova York

Senhoras e senhores leitores deste humilde blog, desculpa o incômodo. O senhor à direita na foto acima poderia estar roubando, mas não, esse senhor meio xexelento entrou na estação armado com aquele carrinho preto que está atrás dele, carregando aquilo sobre o qual está sentado, as duas caixa de som, um adidas falso e um gravador com as bases das músicas que ele, calmamente, sem pedir autorização, permissão ou atestado, começou a cantar. Nesta posição, sem se levantar, movendo apenas as mãozinhas e fechando os olhos sempre que a alma ameaçava lhe escapar, puxou alguns clássicos do Rythm and Blues, de Marvin Gaye para baixo, e eu confesso que só não chorei porque, bem, porque não cabia. Se alguém puxasse o coro, eu não me segurava.

Nova York é tão chique que até mendigo fala inglês (essa frase não cabia bem aqui, mas eu não podia perder a piada).

Fiquei ali esperando o Metrô, que demorava, e foi pintado um clima, enquanto mais gente chegava. Nos dez ou quinze minutos que o ouvi cantar, eu e outros dez depositamos um dólar naquele balde entre as caixas, quer dizer, o cara ganhou um dólar por minuto, o que dá sessenta por hora, quinhentos por dia, dois e quinhentos por semana, dez mil dólares por mês! Se eu tivesse feito essa conta na hora, pegava de volta o meu.

O metrô chegou, me acomodei. Dois rappers aborrecidos discutem em voz alta - rappers estão sempre de mau humor, até para contar piada. Um cartaz na parede diz, em inglês e espanhol: “No ano passado, 1.954 pessoas viram alguma coisa e disseram alguma coisa” – referindo-se a objetos suspeitos deixados em locais públicos – “Então, se você vir alguma coisa, diga alguma coisa”. Ao lado deste, um anúncio de uma universidade: “Sabe quem será seu professor?”, e o rosto de dois professores, um dos quais ganhador de um Oscar. À minha direita, uma gorda lê a história do judaísmo em russo, um senhor negro de gravata dormita e uma moça almoça frango com batatas fritas encharcadas em ketchup. Quem ipod, ouve música.

Algumas estações à frente, um grupo suspeito de adolescentes, na faixa de 11 a uns 14 anos, embarcou. Após Tremont, o Metrô entra num buraco negro, ninguém entra, ninguém sai, até mais ou menos a 145st, Harlem, e foi aí que eles atacaram. O mais velho falou alguma coisa em spanglish aos passageiros, e os quatro formaram uma cruz. Uma coisa começou a apitar – e eu pensei cá com minha pochete supersecreta: pronto; atentado terrorista, bem na minha vez. Ao comando do mais velho, os quatro bateram palma. Olhei em volta, ninguém dava a mínima, devem ter se acostumado com atentados, a gente se acostuma com tudo na vida... novo comando, duas palmas. Alguma coisa tá apitando! E então, eles ligaram um som, e uma música break começou a tocar, substituindo o apito, e os quatro encetaram uma dancinha ensaiada. O metrô estava cheio, veja bem, imagina, todas aquelas pessoas que se acumularam ouvindo o milionário do adidas falso estavam ali dentro! E então, um de cada vez, os garotos foram assumindo o centro da roda, e a fazer requebros break, e depois malabarismo – o mais novo, um neguinho esquálido, simplesmente deu um salto para trás, com o trem andando, depois um outro de rabo de cavalo e penugem no buço, um salto ainda mais espetacular, de lado, tudo ao comando do mais velho e da música que saía de algum lugar que eu não reparei, nem quis mais olhar – eu não estou aqui para ficar dando dólar para cada um que me aparece fingindo que é pobre e mexicano.

Passo horas dentro dos vagões do Metro, indo de um lado a outro da cidade ou voltando para o Bronx. Às vezes, é um carrinho com o bebê mais fofo brincando com a mãe, ou então está no colo do pai, tomando mamadeira e sacolejando. “Em Nova York, aja como um newyorker”, dizem meus guias, não dê atenção, seja indiferente, desvie o olhar. “Se você é brasileiro, seja forte neste momento”, pode estar o sujeito se auto-imolando, isso não é com você. Afinal, quem não tem seus problemas? Nas paredes, o anúncio de uma nova temporada do serial killer mais querido das Américas; ele está em close, é bonito e sorri, o lado direito do rosto todo respingado de sangue. Um hippie entra de bicicleta, uma dona leva um cachorro dentro de uma bolsa, dois japoneses falam alguma coisa sobre Basquiat, mas talvez “basquiat” signifique “pois é”, ou “azeitona”, vai saber.

Marcel Duchamp, artista francês sobre quem falarei mais em outra oportunidade, morou em Nova York entre 1915 e 1918 (depois voltaria para morar aqui, e aqui ficaria até morrer), e declarou em 1964: “Para um francês acostumado com distinções de classe, pude sentir o que uma democracia verdadeira era capaz de fazer. Pessoas que podiam dar-se ao luxo de ter motoristas iam ao teatro de metrô, coisas assim.” De fato, pode ser meio dia ou meia noite, não importa, estão todos ali, indiferentes entre si, calorosos com os seus, mas todos usam o Metrô. É quente, cheira mal, mas é relativamente limpo para um transporte centenário que ainda leva um bilhão de pessoas por ano para cima e para baixo, a 2 dólares a viagem.

Como a praia do carioca e a praça Castro Alves para o soteropolitano, o metrô de Nova York é do povo.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

O Anjo Exterminador

Pornographic Angel, pout-pourri de oito crônicas da série “A Vida Como Ela É”, de Nelson Rodrigues, está em cartaz no Ohio Theatre, Soho. Descobri por acaso e, curioso, fui assistir na quinta-feira, 20 de setembro (eu e a Lucia Guimarães, do Manhattan Connecction/GNT – chique né?)

Nelson Rodrigues me vem sempre que alguém me pergunta, no Rio de Janeiro, se eu não fui à praia no final de semana. Existe entre os cariocas, ainda hoje, um preconceito racial inconsciente contra pessoas muito brancas como eu, mas ela é passível de aceitação pela sociedade se freqüentar a praia. Na visão do carioca médio típico, uma pessoa muito branca e conformada, ou seja, que não toma sol para mudar sua infame situação, só pode ser uma pessoa infeliz. Porque, para o carioca, a praia representa tudo que há de bom na vida e ainda por cima é de graça, então eu não fico dando maiores satisfações, não fico dizendo que eu gosto de praia mas não tenho mais saco para ir porque preciso ficar me besuntando de filtro solar, enfurnado sob barracas ou de camisa - porque de nada adiantaria. Eu digo simplesmente que estou tratando um câncer de pele, e assim angario a solidariedade do carioca. Como o mineiro, Nelson e Otto Lara, o carioca só é solidário no câncer.

Mentira, o carioca também é solidário com as pessoas que, de dia, andam de carro com os faróis acesos. Experimente; todos os cariocas farão sinais angustiados, avisando-o de que seu farol está aceso, alguns quase se atiram sua tuas rodas...

Eu admiro muito os trabalhos de Nelson Rodrigues. A começar pelo seu profundo conhecimento dessa alma carioca, um tipo que, para resumir, separa o joio do trigo, mas gosta mesmo é de cultivar o joio. Nelson adorava explorar, no teatro ou nas suas crônicas para o jornal, a imagem que o carioca tem de si e faz questão de vender, contrapondo-as com as deformidades éticas que só costumam vir à tona por acidente, sendo esses acidentes seus turning points prediletos. Nas suas histórias, esposas perfeitas revelam-se lascivas, pais exemplares, incestuosos, médicos são pedófilos. Às vezes, nem mesmo a vizinhança fica sabendo por que fulana se suicidou, cicrana matou o marido ou beltrano fugiu de casa, mas o espectador sim, sabe exatamente o motivo, que geralmente é o mesmo: a inocência abalada.

Inocência é a palavra-chave do trabalho de Nelson Rodrigues, e não é à toa; trata-se de um patrimônio que as sociedades ocidentais modernas lutam para manter preservado, contra as investidas de demônios extra-sociais que as fustigam de forma incansável, procurando convencê-las dos prazeres indizíveis do conhecimento e da perdição, já que inocência é sinônimo de desconhecimento e, supostamente, pré-requisito para manutenção da ordem social. Tudo começou com Adão e Eva.

A inocência infantil é a mais óbvia delas; sua violação é algo que abala e emociona profundamente, brasileiros ou americanos, enquanto que nas sociedades que a aceitam melhor, como a japonesa, teoricamente não se obteria o mesmo efeito. A infância talvez seja o símbolo da inocência ideal, aquela da qual nos afastamos à medida que nos tornamos imperfeitos, isto é, envelhecemos, ou ainda uma reserva moral, o último bastião contra a danação total, cuja corrupção significaria o fim da nossa sociedade. Mas há, além da infância, ainda muitos inocentes que precisam ser preservados – o marido, que não deve saber das traições da esposa; a mulher feia, que não pode saber que o é; os vizinhos, que não aceitam pederastas.

Em O Nome da Rosa, Umberto Eco mostra como a inocência de monges precisou ser violentamente preservada contra uma literatura subversiva – satírica – para que não fossem maculados pela liberdade do riso, o que poderia contaminar o monastério e abalar hierarquias, minando assim a ordem. Nesse sentido, a defesa da inocência pode virar uma política de estado, e aí tornar-se extremamente fascista. Foi assim com a Inquisição, uma violenta reação da Igreja Romana aos que puseram em dúvida seus dogmas, e estaríamos vivendo agora uma era em que nossa sociedade ocidental é que aparece como o vilão, o diabo que acena com libertinagens para as sociedades puras muçulmanas, ao menos na visão de grupos fundamentalistas como a Al Qaeda.

Nelson Rodrigues não preserva inocentes nem pecadores, ao contrário, os expõe. Em seus trabalhos, a inocência está prestes a ruir a qualquer momento, e em muitos casos seu ponto de vista é justamente a fruta podre. Os demônios os espezinham, desejos reprimidos e obsessões atávicas os consomem de dentro para fora, e somos convidados a testemunhar sua luta inglória contra o imponderável, dia a dia, de forma cruel, até o acidente de sua revelação, ou libertação, caso queiram, e seguimos então acompanhando as mazelas provocadas por este momento, uma inocência em frangalhos e suas conseqüências, invariavelmente trágicas. Nelson, ao relatá-lo, age como quem tenta extrair do rosto uma espinha encravada, um dia mexendo, noutro remexendo, então enfiando a unha, em direções diferentes, irritando-nos com a exacerbação dos caracteres, bons e maus, expressões que se repetem, frases incompletas e um declarado apreço pelos desviados, tudo envolto num delicioso português de botequim dos anos 50.

A peça Pornographic Angel, que está em cartaz no SoHo até 30 de setembro, marca a estréia do Tantrum Theatre. Trabalhando em colaboração com a Lord Strange Company, formou-se aqui um curioso grupo intercontinental, com elenco, equipe técnica e produção composta de profissionais dos cinco continentes. A tradução coube a Alex Ladd, brasileiro radicado nos EUA há vinte anos; a direção, à Claudia Tatinge Nascimento, carioca de São Conrado. A proposta do grupo, inteligente, é dar ao público americano uma visão geral do trabalho do Nelson Rodrigues, e a estratégia foi apresentá-la na forma de uma colagem não linear e multimídia, contendo os principais conceitos manuseados pelo autor, principalmente sua atmosfera de quebra da inocência. Perde-se, com a compilação, um pouco da extensão do nosso autor, mas opção é louvável e compreensível, em se tratando de uma introdução.

O Ohio é um teatro que pode ser considerado pequeno – deve ter uns 50 lugares, pouco mais – mas o palco é grande, e complicado, com pé direito alto e seis colunas nas laterais. A direção procurou ocupar o espaço com a distribuição de personagens entrando e saindo, não de cena, mas do foco, apoiando-se em elementos cenográficos variados e recursos como vídeos e projeção de textos. Dependendo de um mau uso, essa dinâmica pode acabar atrapalhando ou mesmo derrubando um trabalho, mas esse não foi o caso aqui; o grupo demonstrou segurança e a peça, de 1h20, flui de maneira consistente e agradável. A despeito de tolices como “a intraduzibilidade de Nelson Rodrigues”, a peça expressa bem o autor em inglês, e o expressariam em qualquer outra língua, por exemplo, quando personagens fora de quadro ecoam frases ou palavras, dando vazão às suas famosas repetições, ou um manequim representa um marido que não fala com a esposa, o que é desesperador em Nelson e na peça. A história de Jacira, a mulher feia desprezada pelo marido, é particularmente dolorosa, a feiúra tendo sido obtida com simples lambuzar de batom e boa dose de dramaticidade de Sara Bremen. Uma laranja, cortada ao meio num golpe pelo marido traído pelo amigo, dá a acidez necessária à crônica original, e as músicas brasileiras antigas, cantadas em palco nas passagens de cena, o sotaque suficiente de tropicalidade. Os atores estão bem e seguros, demonstrando apenas algumas dificuldades naquelas habilidades que realmente, aí não tem jeito, só brasileiro é capaz, como sambar.

Em suma, o grupo, ao explorar o que há de mais universal em Nelson – na minha visão, a corrupção da inocência – cumpre importante e corajoso papel de divulgá-lo em palcos de Nova York. Não há motivos para que um autor desse calibre, não importa se brasileiro ou tailandês, seja tão pouco representado na Europa e nos Estados Unidos.

Get the whole thing

– Você tem seqüestros aí?

Fiz essa pergunta em três ou quatro lugares, incluindo o Lindy’s, onde eu fui atendido por uma boa senhora branquinha e polidamente americana, e a reação sempre foi “What?”, seguido de uma feição de pavor. Que diacho de lugar é esse, pensava eu, que não tem um simples seqüestro? Essa gente não limpa a boca? Eis que o Steve, o simpático pizzaiolo sérvio do Rocco’s, elucidou a questão: “Do you have kidnappings?” – disparei eu, mais uma vez; “you mean, napkins?”, disse ele, compreensivo, me apontando os guardanapos.

Este Steve, cujo nome desconfio ser uma adaptação ao gosto americano (sérvio chamado Steve?) é do Kosovo, aquele lugar sobre o qual não sei absolutamente nada mas que esteve envolvido numa guerra monstruosa em que militantes de uma facção, a título de limpeza racial, seqüestraram e estupraram mulheres, muitas vezes vizinhas de rua com quem compartilharam a infância, simplesmente por serem de outra nacionalidade ou religião – entre outras indizíveis barbaridades. Não sei qual foi a participação do Steve nessa história, e qualquer que tenha sido, terá sido dramática, o fato é que ele e seu sócio são muito divertidos, e sua pizzaria é desses lugares em que as senhoras solitárias do Bronx se sentam, em busca não só de um slice de pizza bom e barato, mas principalmente de alguma risada.

Pois bem, foi esse sérvio quem deu o tom de minha viagem a NY. Ele tirava do forno uma pizza fechada, do tamanho e formato de uma vitória-régia madura, cheirosa e estalando de quente, e eu parado em frente ao balcão aguardando ser atendido. “Next!”, ele gritou, foi a deixa para eu perguntar sobre o que havia dentro daquela massaroca. Steve empurrou seu bonezinho para trás e coçou a cabeça, esboçou um well, e começou a arrolar tudo que ali havia de bom e gorduroso. No quinto ou sexto ingrediente, e eu já não lembrava do primeiro, me entreguei: “Forget, just give me...”, ao que Steve agradeceu, levantando os braços:

– Yeah, man. Get the whole thing!

“Get the whole thing” tem sido, desde então, o lema dessa minha viagem. Eu trouxe tudo para fazer uma abordagem perfeita a Nova York: três guias sobre a cidade, dicionário, laptop, câmera fotográfica, uma pochete super-secreta que fica secretamente aderida à barriga sob a cueca, cinto e calça, entre o umbigo e os pentelhos, para guardar o passaporte e notas altas, e aqui ainda obtive outros mapas, guarda-chuva, jornais com a programação cultural, enfim tudo o que há de mais moderno em matéria de tecnologia da informação e mais antigo em questão de segurança.

Não demorou para eu perceber que não ia funcionar. Um bom exemplo disso foi minha ida à agência do Banco do Brasil em Manhattan. O NYBG, que está financiando a viagem, pretendia me dar um cheque, mas nem eu nem eles sabíamos se bancos brasileiros aceitam um cheque americano. Mandei um email para o banco, e eles responderam dizendo que sim, seria possível através de uma ordem de pagamento e sei lá mais o que, então resolvi checar pessoalmente.

Lá fui eu, montado: boné na cabeça, óculos de leitura no bolso da camisa, a mochila com livros, dicionário e guarda-chuva no peito, cigarros e óculos escuros estrategicamente acessíveis no zíper da frente, máquina fotográfica perpassando a mochila, uma carteira com dinheiro miúdo e cartões no bolso direito da calça, chaves de casa no esquerdo, mapa do metrô no bolso traseiro esquerdo, aquela pochete secretamente escondida naquela inominável local do corpo, ficando portanto livre o bolso traseiro direito para qualquer eventualidade.

A agência do Banco do Brasil fica na 48th Street, entre as 5ª e 6ª avenidas, número 600, terceiro andar. Falando assim, parece muito simples. Para quem chega, não é nada simples. Primeiro você precisa saber qual a linha de Metrô passa perto de você (são 26 linhas), e se essa linha passa perto do endereço que você procura, caso contrário, serão necessárias conexões, e então descobrir que acesso ao Metrô deve-se entrar, pois as entradas dependem da linha, e mesmo em entradas certas há que se prestar atenção se estão em operação – antes de descer as escadas, há bolas que podem ser verdes ou vermelhas, as verdes significando que está em operação, vermelhas caso contrário. A parte do Bronx onde estou hospedado é servida principalmente pela linha D, que por sorte é uma boa linha, pois corta Manhattan de norte a sul, mas dependendo da situação – isto é, se for hora do rush, às terças e quartas e sábados, se não estiver chovendo e/ou não for dia de Saint Patrick, coisas assim – também me serve a linha B. Na dúvida, me disse Emily, tome sempre a linha D!

A agência fica num dos prédios do Rockfeller Center, com uns 700 andares sei lá eu, num dos quarteirões mais suntuosos de Manhattan. Para entrar no prédio, passa-se por uma daquelas portas giratórias lindas e douradas que só vemos em filmes, e deve se dirigir a uns dos guardas impecáveis na elegante portaria. Contei-lhe toda a minha vida, cheque, banco, Brasil, tudo que pudesse ajudar, mas ele ficou olhando para mim sem demonstrar nenhuma piedade. De alguma forma, compreendeu que eu precisava ir ao terceiro andar, e para tal só precisava de uma coisa da minha pessoa:

– Passport.

Diante da humilhação a que me expus para chegar ao documento, o segurança demonstrou, enfim, algum esgar de comoção.

Hoje sou outro. Saio de casa apenas com algum dinheiro, cartões, um único mapa, meus óculos e, às vezes, a câmera. Que se dane se chover, que se dane a história de cada casinha de Manhattan, se não entendem meu inglês, paciência. Escolho um foco – um museu, uma loja, um cinema – e ando sem rumo ao redor, parando onde me dá na telha, ou seja, getting the whole thing! Ainda uso a pochete, até porque ela modela minha barriga... Ah, bancos brasileiros não aceitam cheques americanos.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Little Brazil

Passeei pela rua Little Brazil. Sim, nós temos nossa própria rua aqui em Nova York – a que seria a 46th street, leste. O ponto é bom, mas para ser sincero, tem mais restaurante chinês que brasileiro. Há uma loja de biquínis, um dos poucos produtos genuinamente brasileiros cobiçado no exterior, mas fora isso, nossa participação no comércio de rua, nesta e em toda Manhattan, é tímido. Sucesso brasileiro de público e crítica são os serviços, de depilação (brazilian wax, anuncia até nas rádios), que vêm a reboque de outro grande sucesso internacional: os salões de cabeleireiros e manicures.

Segundo Maxine Margolis, autora do livro “Little Brazil, na Ethnography of Brazilian Immigrants in New York City”, os brasileiros novaiorquinos são imigrantes dos anos 80 que se estabeleceram primariamente em Astoria, no Queens, mas em seguida também em outros bairros do subúrbio, afastados uns dos outros. Com uma população estimada em 150.000, os brasileiros não formaram comunidades em Nova York, pois, ao contrário de outros imigrantes estrangeiros, não pretendiam ficar; o objetivo era ganhar dinheiro e retornar para o Brasil. De fato, ouve-se nosso português “levemente anasalado”, conforme o descreve Margolis, em todos os bairros, mas não se há clubes, manifestações coletivas, encontros ou coisas do tipo, embora a festa da independência da Little Brazil esteja em franca ascensão. Eu não estava aqui para ver a desse ano

Mas a arte brasileira, e em muitas de suas expressões, com esta me deparei algumas vezes, todas sem querer. O artista plástico Tunga, por exemplo, expõe no P.S.1 (ver www.ps1.org/ps1_site/content/view/267/102/), um centro de arte contemporânea do Queens tão bacana que acabou sendo incorporado ao MoMA. Depois falo mais sobre ele, pois pretendo ir lá. O documentário Manda Bala, rodado em São Paulo e ganhador do melhor documentário do Sundance Film Festival 2007, também está em cartaz (ver resenha do New York Times em movies.nytimes.com/movie/381465/Manda-Bala/overview). Falando em cinema, o New York Film Festival, que começa em 28 de setembro, faz uma retrospectiva sobre Joaquim Pedro de Andrade, trazendo sua obra completa (Macunaíma, Garrincha, etc.) – veja mais em filmlinc.com.

E outro dia estava eu passeando no Soho, quando me deparei com um cartaz, propaganda de uma peça que estava para começar ali mesmo chamada Pornographic Angel (www.pornographicangel.com), baseada em histórias de um tal... Nelson Rodrigues! Segundo o New York Times – dizia o cartaz – se ele (Nelson) tivesse escrito em inglês, seria “tão importante, quanto Tennessee Willians, Eugene O’Neill ou Harold Pinter, tal universal, atemporal e subversiva é a qualidade de seu trabalho”. Ontem eu fui assistir à peça, conto numa próxima postagem.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

O valor da arte

Fui ao cinema, no Angelika Film Center, que fica no East Village. É um dos cinema dos moderninhos de NY. Fui assistir, sem saber do que se tratava (coisa que adoro fazer, às vezes dá certo, às vezes dá errado), ao filme The Rape of Europa (therapeofeuropa.com), e só quando começou que eu soube que era um documentário. Saí estarrecido.

O filme narra a trajetória do Nazismo e da Segunda Guerra na Europa, e os problemas, entre tantos outros, que isso representou para as peças de arte e religiosas. Hitler, que tentou ser artista em certo momento de sua vida, havia traçado um plano sinistro – mais um, e como sempre ambicioso e delirante - de construir a maior coleção para o maior museu da história, a ser projetado por seu arquiteto Speer, literalmente roubando as grandes obras de arte dos países que pretendia conquistar, obras que, na sua visão, fossem significativas para a raça ariana, destruindo o resto que considerasse inferior – obras, museus e igrejas. Ao anexar a Áustria, começou a fazê-lo com as obras de Gustav Klint; quando invadiu a Polônia, retirou as imagens sagradas da secular igreja de Varsóvia, principal símbolo da cidade, colocando-a abaixo em seguida, com o objetivo de humilhar a memória do povo polonês. Terrificadas, França e Rússia iniciaram incríveis esforços de encaixotar e retirar todas as obras – pinturas, painéis imensos, esculturas muitas vezes gigantescas, vasos, tudo! - dos museus nacionais do Louvre e do Hermitage, em São Petersburgo, escondendo-as em Castelos no sul da França e na Sibéria, enquanto seus cidadãos fugiam desesperados e seus exércitos se preparavam para o pior. Tudo isto é retratado com fotos, filmes da época e depoimentos de sobreviventes ou descendentes dos personagens envolvidos. À medida que os aliados começam a virar o jogo, são os alemães que passam a esconder as obras, às vezes às pressas, ou pior, usar prédios históricos como escudos contra bombardeios. O documentário mostra, por exemplo, um grande erro dos aliados, ao decidir pela destruição de Monte Casino, um mosteiro medieval na Itália que não abrigava um só alemão, apenas moradores da região e monges – os alemães estavam em volta. Em Piza, onde também foi destruído um castelo, até hoje estão sendo remontados, com os milhares de cacos encontrados nos escombros, os afrescos que cobriam suas paredes. Outra cena estarrecedora são as fotos e depoimentos de uma velhinha italiana sobre a explosão de algumas pontes em Florença, uma deles projetada por Michelangelo, por parte dos nazistas que batiam em retirada, acuados pelos aliados. E depois da guerra, ainda era preciso restaurar e devolver tudo aos seus donos, o que continua sendo feito até hoje por pessoas dedicadas a tal.

Uma questão que permeia o documentário é a importância de salvar obras de arte versus vidas humanas. Mas um dos depoentes, um professor polonês, de certa forma é quem melhor desfaz a dualidade. Uma vez indagado por alunos, por que a igreja de Varsóvia devia ser reconstruída, sua resposta era “pelos mesmos motivos que a destruíram”. A igreja era um símbolo do povo polonês.

NY: Quatro séculos de história em uma postagem

Passando uma temporada em Nova York, a cidade dita “como nenhuma outra”, “inesgotável” ou “a mais cosmopolita do mundo”, nota-se o quanto ela deve à sorte de ter acolhido gente de todos os continentes. Com seus 8 milhões de habitantes e cerca de 18,7 milhões de habitantes na sua área metropolitana, a região onde se encontra é a segunda mais populosa da América do Norte, sendo superada apenas pela Cidade do México. Quase a metade dos habitantes não tem o inglês como língua mãe, e 20% mal falam o inglês. A convivência mais ou menos harmônica de culturas aqui é diferente da brasileira, onde ocorreu uma considerável miscigenação dos povos; em Nova York as culturas não parecem ter se misturado, e sim formado redes de relacionamento que mantiveram preservadas suas identidades, na medida do possível. Assim, enquanto sérvios servem pizza, judeus ortodoxos vendem calcinhas. Conhecer a história de Nova York ajuda, portanto, a entendê-la melhor.

Em 1624, um grupo de assentadores da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais chegou à Manhattan (“Manahata” no original indígena, ou Ilha das Colinas), estabelecendo entreposto comercial no sul da ilha. O norte da região era colonizado por ingleses (New England), e para defender seu território, o governador Peter Stuyvesant ergueu, em 1653, o muro que explica o “wall” de Wall Street.

A prosperidade econômica da região começou a atrair imigrantes espanhóis e judeus e africanos. Em 1654, chegam os primeiros judeus, expulsos de Portugal. Dirigiam-se, na verdade, para o Recife, onde já estavam os holandeses e que, sendo protestantes, toleravam-nos. Mas os holandeses haviam sido expulsos do Brasil, então os mal-informados judeus não puderam sequer desembarcar. Famintos e espoliados por piratas, apenas os sobreviventes chegaram em Nieuw Amsterdan, onde foram recebidos de braços abertos. Mas a prosperidade também atraiu a cobiça. Entre 1652 e 1674, pelo menos três guerras pelo controle da cidade foram travadas entre Países Baixos e Inglaterra, que acabou finalmente tomando-a e rebatizando-a como Nova York em homenagem a James, Duque de York.

A cidade cresceu rapidamente sob controle inglês. Em 1700, a cidade possuía uma população de sete mil habitantes, e ruas e estruturas cobriam a parte inferior de Manhattan. Surgem os primeiros jornais e faculdades, as primeiras questões relativas à liberdade de expressão e, com elas, os primeiros movimentos subversivos. Em 1765, comerciantes juntaram-se no centro na cidade, protestando contra novos impostos criados pelos britânicos; em 1770, habitantes da cidade enfrentaram soldados britânicos, tendo uma pessoa morrido em combate. Em 1776, George Washigton lê a Declaração de Independência para uma tropa que representaria Nova York na luta das 13 Colônias pela independência da Inglaterra, fato concretizado em 1789. Washigton é seu primeiro presidente, tomando posse na cidade que viria a ser a sede provisória do novo país por um ano (passando então para Filadélfia).

Por volta de 1800, Nova York tinha cerca de 60 mil habitantes, e já era a maior cidade dos Estados Unidos. Em 1811, a municipalidade de Nova York, buscando melhor planejar o crescimento da cidade, que até então crescera desordenamente, decidiu que toda via pública construída teria que correr em linhas paralelas, num sentido norte-sul (avenidas) ou leste-oeste (ruas). O Canal de Erie, aberto em 1825, permitiu acesso dos Grandes Lagos ao Oceano Atlântico, e Nova York consolidou-se então como o principal centro portuário norte-americano, ultrapassando a cidade de Montreal. Em decorrência, um número crescente de bancos e companhias financeiras escolheram a cidade como sede, contribuindo para seu o rápido crescimento.

Nova York tornara-se a terra das oportunidades, atraindo os imigrantes europeus. Entre 1880 e 1930, 12 milhões de imigrantes europeus entraram na América por Manhattan, em busca de uma vida melhor. Até o final do século XIX, a maioria era procedente da Alemanha, Irlanda, Inglaterra, Suécia, Noruega ou Dinamarca, mas após 1890, principalmente italianos e judeus. A miséria encorajou sicilianos e napolitanos a criarem a Little Italy, logo acima do distrito mais antigo; dois milhões de Judeus, fugindo dessa vez de perseguições na Rússia, criaram suas próprias comunidades no Lower East Side.

A construção de inúmeras pontes e de um eficiente sistema de metrô, conectando Nova York com os subúrbios (Bronx, Queens, Brooklyn), facilitou a locomoção de pessoas e veículos ao longo da cidade. Como consequência, muitos habitantes abandonaram Manhattan, movendo-se para outras regiões. A ilha, porém, continuou como seu distrito mais poderoso, e um dos principais centros financeiros do mundo. Por volta de 1905, a importância de Nova York no cenário da economia mundial havia ultrapassado àquela de Londres. Surgem os primeiros milionários da história mundial, consolida-se um estilo de vida, e contra ele o primeiro atentado terrorista, em setembro de 1920 (falo mais sobre isso quando der).

Em 1930, já com mais de sete milhões de habitantes, Nova York foi atingida pela Grande Depressão. Para resolver os grandes problemas socio-econômicos, grandes estruturas, como pontes e prédios foram construídos. Houve também uma corrida, pela construção do prédio mais alto na cidade, que resultou nos grandes arranha-céus como o Chrysler Building e o Empire State Building.

Após a Segunda Guerra Mundial, Nova York seria afetada por inúmeros problemas, basicamente decorrentes da pressão demográfica - poluição do ar e da água, congestionamentos nas vias e no sistema de transporte público, favelização, alta taxa de criminalidade, conflitos raciais, desabastecimento de energia, desemprego, emigração de sua classe média – que só viriam a ser contornados na década de 90, quando passou de uma metrópole em decadência para uma cidade global em plena revitalização, em boa parte ao investir no turismo como solução para geração de novos postos de trabalho e inibir as zonas de tensão.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

NYBG, a missão

Ao me deparar com o prédio que abriga a Mertz Library, a primeira sensação que tive do Jardim Botânico de Nova York foi de solidez. Trata-se de um castelo neo-clássico de beleza acachapante, no estilo Beaux-art, finalizado em 1899 mas recentemente restaurado e adaptado para abrigar espaços de exibição, novas áreas de trabalho e um laboratório de digitalização de imagens.

Solidez parece ser uma palavra apropriada não só para o prédio, mas para a instituição como um todo. O New York Botanical Garden, doravante NYBG, foi um dos primeiros jardins botânicos criados nos EUA (1891), ocupando uma área de 96 ha, 20 dos quais conservam intactas florestas nativas. Reúne 50 jardins, exibições de plantas e coleções vivas diferentes, sua biblioteca tem um acervo de 50.000 livros sobre botânica e ciências afins, seu herbário, 7 milhões de espécimes. Oferece, anualmente, 900 cursos para milhares de adultos, crianças e professores, o maior e mais diversificado programa de educação continuada sobre o manejo de plantas, jardinagem, horticultura e paisagismo do mundo. Com 100 anos de estudos sobre a flora de várias regiões e ecossistemas do globo, é uma das instituições mais tradicionais e atuantes na pesquisa botânica, e continua investindo em conhecimento e novas tecnologias - em 2006, por exemplo, inaugurou o Pfizer Plant Research Laboratory, dedicado ao estudo de genoma de plantas e à sistemática molecular, e tem este nome não por pertencer ao Laboratório Farmacêutico, mas em homenagem ao maior doador privado. Chamo atenção para esse detalhe, pois é aqui que se observa uma grande diferença entre a cultura americana e brasileira no que se refere a recursos financeiros.

Várias “coisas” que existem no NYBG tem o nome associado a uma pessoa. Embora, como no Brasil, haja homenagens a grandes nomes da ciência, principalmente americana (no JBRJ, a Biblioteca é Barbosa Rodrigues, o Herbário é Dimitri Sucre etc.), aqui é comum o nome associado à “coisa” ser uma pessoa que contribuiu com a maior parte dos recursos para sua criação ou desenvolvimento. Essa coisa pode ser um prédio inteiro, um setor, um projeto, uma exposição, um banco de praça, uma árvore ou uma lata de lixo. Em todo canto, há uma placa com o nome de financiadores, e eles estão às claras, são exibidos sem cerimônia – pelo contrário, quase sempre têm maior destaque do que autoridades, prefeitos ou presidentes. O doador demonstra assim seu amor por uma instituição ou cidade, ao mesmo tempo que eterniza seu nome em uma espécie de marketing social permanente.

Embora para os brasileiros, seja abominável a idéia de se ter, digamos, um “Laboratório Moreira Salles de Fitogeografia” dentro de seu jardim botânico, isto seria comum aqui e, pelo que sei, nos EUA como um todo. O banqueiro J. P. Morgan, por exemplo, ao morrer em 1913, deixou U$250 milhões para que fosse criada, entre outras coisas, a Pierport Morgan Library, no centro de Manhattan, descrita como a mais bela coleção de manuscritos medievais do mundo. Nós brasileiros não podemos aceitar que instituições públicas recebam o dinheiro, digamos, imundo de um banco burguês-capitalista-selvagem; doações aceitáveis são apenas aquelas que vêm do governo, o suado e surrado dinheiro público. E quanto aos nossos bancos burgueses-capitalistas brasileiros, por sua vez, raramente lhes passa pela cabeça financiar um Laboratório de Fitogeografia, que não dá retorno e mal serve como marketing, já que nem o banco nem ninguém mais sabe para que serve – provavelmente outra bobagem de cientistas malucos brincando de misturar produtos químicos. Tais bancos ou congêneres preferem não arriscar, é mais seguro criar suas fundações com o propósito de absorver os recursos que iriam para o imposto de renda – mais uma vez nosso querido dinheiro público – contando para tal com o auxílio luxuoso das leis de incentivo à cultura, criadas pelo próprio governo. Aliás, já que a política é esta, que se criassem ao menos leis de incentivo à ciência, pois projetos de cunho estritamente científico – como o de informatização do herbário do JBRJ – precisam fazer contorcionismos muitas vezes delirantes para se candidatarem às benesses de leis como a Rouanet.
Em resumo, filantropia é a palavra mágica que explica, em boa parte, a solidez de instituições como o NYBG no hemisfério norte. Claro, para aceitá-la no coração é preciso não pensar como foi que J. P. Morgan, 100 anos atrás, conseguiu deixar U$250 milhões em conta corrente, quantas almas ele terá extorquido, quantos miseráveis corrompido, quanta usura praticado... é preciso ter a esperança de que nada disso é necessário para se acumular renda.

Doações não são, obviamente, a única fonte de renda do NYBG. Há também o programa de adesão de sócios, similar aos “amigos do Jardim Botânico” do Rio, e a bilheteria proveniente dos ingressos, e talvez ainda outras fontes, sobre as quais eu ainda não tenho dados, mas procurarei obter.

Não basta, no entanto, obter recursos financeiros, é preciso fazer por merecê-lo, ou seja, saber aplicá-los, para que ele renda frutos. No caso de um jardim botânico, aplicar bem os recursos captados significa, antes de tudo, ter bem definida uma missão, e persegui-la com afinco. Tentarei extrair do que vejo e ouço no NYBG qual o papel que a instituição reservou para si, e como age para cumpri-lo.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

O Bronx

O condado do Bronx, que inclui o distrito homônimo, foi colonizado por europeus no século XVII, devendo o nome a um tal Jonas Bronck, sueco ou alemão que ali teve uma fazenda, daí Bronck’s, e depois Bronx. As etnias que hoje habitam a região chegaram por volta dos anos 30, enfrentaram decadência e pobreza até os anos 70/80, mas atualmente o distrito, pela oferta de moradia espaçosa e barata, as diversas opções de transportes públicos (metrô, trem e ônibus) e o comércio variado, vem atraindo artistas, o que em Nova York é sinônimo de sucesso e fama.

Andar pelo Bronx é como estar dentro de um filme do Spike Lee. Ouve-se a língua gingada dos negros e hispânicos, velhos italianos, comerciantes árabes, gregos, turcos ou europeus do leste, conversando entre si ou ao celular. Os jovens negros usam bonés com a aba para o lado, camisas imensas, tênis gordos e as calças ou bermudões começam aonde a bunda acaba. Entre os hispânicos, estão na moda barbichas e bigodes esquisitos. Todos com quem falei foram simpáticos e solícitos, e raramente ouço “modofocker”. Não há cachorros ou gatos de rua; mamífero comum são os esquilos, de várias espécies ou variedades (castanhos, pretos, listrados ou lisos), subindo e descendo dos onipresentes e bonitos carvalhos.

As ruas e as calçadas são largas e o trânsito flui bem, mesmo quando há carros estacionados em ambos os meios-fios, com exceção do horário do rush, quando nada em Nova York flui bem. E são limpas, embora eu não veja garis limpando-as sistematicamente, ou caminhões de coleta passando para cima e para baixo. Pelo que entendi, quem limpa as calçadas são os próprios moradores. Vêem-se poucos papéis e plásticos jogados nos canteiros, os cocos de alguns cachorros ficam pelo chão, mas são raras as guimbas de cigarro – aliás, os fumantes parecem ser minoria, o que é fácil de explicar: o maço de cigarros custa U$7. Os carros, todos, são bastante luxuosos para os nossos padrões (aqui seriam carros de ricos), e à noite ficam estacionados nas ruas, já que há pouquíssimas garagens. Vi apenas um com tranca no volante; na frente do meu prédio, até uma moto luxuosa passa a noite na rua. O único sinal de violência que reparei foi o furo de bala em uma janela. No geral, tanto de dia quanto de noite, é uma vizinhança silenciosa; à tardinha as crianças vão para a frente dos prédio com suas bicicletas e patins, à noite é a vez dos adolescentes agruparem-se em rodinhas para falar besteira, se pegarem, beber ou fumar maconha escondido. De dia, a polícia passa de vez em quando, sem stress, tanto quanto qualquer outro serviço público ou privado. Quando está nervosa, chega na intimidação: sirene à toda, luzes piscando, velocidade. Mas não pude vê-la em ação, o único caso de intimidação que ouvi alguém contar foi dentro do Jardim Botânico, onde um segurança, à base do “mão-na-cabeça-vagabundo”, teria abordado um visitante que pisava na grama, de forma inadmissível.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Recebendo as chaves da cidade

Fui direto ao NYBG, pois o combinado com a Barbara Thiers, curadora/administradora do Herbário (que foi quem me fez o convite para a viagem de intercâmbio) era eu passar lá para ser encaminhado às minhas instalações. Nota-se que a instituição tem experiência em abrigar estudantes estrangeiros, em geral pesquisadores botânicos do mundo todo. Recebi as chaves do apartamento onde estou alojado, um cartão magnético que me dá acesso ao herbário e outros setores (todos com senha de acesso) e um crachá para entrar no jardim botânico, assinei alguns formulários relacionados ao meu visto e recebi cartas com horários, dicas, mapas, recomendações e regras de uso dos ambientes e materiais de trabalho. Recebi também uma chave de uma sala de estudo exclusiva para mim.

Bob, um solícito senhor que trabalha na segurança do jardim, me levou aos meus aposentos, num carro da segurança, pois o apartamento fica num prédio a 10 minutos, a pé, do campus. Para chegar até minha cama, são necessárias três chaves: uma para a portaria, outra para a porta de entrada do apartamento, outra para a porta do quarto propriamente dito. O apartamento é enorme (150 a 200m²), reformado e limpo, com uma antesala, uma sala grande, com TV a cabo, um corredor que leva aos quartos, uma boa cozinha aonde fica o telefone, uma despensa com utensílios de limpeza e higiene, um banheiro razoável e dois quartos grandes, com armários, cada quarto com duas camas e um ar-condicionado não-embutido. “Todas as portas só abrem com a chave, portanto cuidado para não ficar preso”, frisou Bob, assim como um bilhete afixado na entrada. “Ok”, disse eu, sem dar a devida atenção.

Assim que o Bob saiu, desfiz minha mala, coloquei um short, liguei o ar-condicionado, peguei uma toalha e fui tomar banho, encostando a porta do quarto para o ar não escapar. Ao fim do banho, a porta do quarto não abria, e tudo meu estava dentro. E quando eu digo tudo, me refiro a mala, dinheiro, passaporte, números de telefone, óculos de leitura, laptop, enfim... Tive então que ligar para a segurança do NYBG (cujo número, por sorte, estava ao lado do telefone) e, em 30 minutos, recebi o Bob com uma cópia da chave. Eu estava de short e toalha nos ombros. Ele saiu rapidinho, sem jeito, e eu espero nunca mais encontrá-lo.

No resto do dia, descansei um pouco, passeei pela neighborhood e comprei coisas. Gastei U$27, cinco no almoço (uma fatia gigante de pizza e uma coca 600ml), U$12 entre shampoo, aparelho descartável para barba, guarda-chuva (estava chovendo no dia) e coisas para o café da manhã em casa; à noite, mais U$10 numa espécie de panqueca imensa, de frango com salada, mais fritas, café expresso e água. Esqueci o açucar.

Diário de Viagem a Nova York: a chegada

A viagem começou no dia 09 de setembro de 2007, quando parti do Rio de Janeiro, às 18h30 (um pequeno atraso). Fiz uma conexão em São Paulo, mudando de avião, e em seguida embarquei para NY, também com pequeno atraso. A viagem foi cansativa, pois eu estava numa poltrona no meio da classe econômica, e um bebê de uns dois anos chorou por horas a fio. Assisti a dois filmes, bati papo com um simpático vizinho, engenheiro de processos de Sertãozinho/SP, li o The New York Times (onde soube, aliás, que um criança de 9 anos tinha sido atingida na cabeça por uma bala perdida!), dormi um pouco, morri de frio e cheguei, às 6h15, no destino (estava previsto para as 6h). Cansado, ainda enfrentei a fila dos imigrantes, imensa, e fui aceito sem delongas por uma agente federal inesperadamente simpática. Eu estava preocupado com meu inglês, mas deu para o gasto.

O aeroporto JFK me decepcionou. Eu esperava uma torre de babel com hordas de latinos e chineses batendo cabeça, mas ele estava vazio e é pequeno – lembra nossa rodoviária Novo Rio, um pouco menor. A primeira providência foi tomar o famoso táxi amarelo. Praticamente não troquei palavra com o motorista da República Dominicana. E quando troquei, me arrependi, pois ele achou, por conta do “Gonzalez”, que eu era mais um latino tentando a vida, e passou a falar comigo em espanhol, que (infelizmente) não falo. Percebi que ele fala mal o inglês, ficou tentando descobrir aonde era o prédio “Ashley, Emiliy”, que na verdade, tentei explicar-lhe em vão, é a pessoa do NYBG com quem vou trabalhar.

Levamos cerca de uma hora do aeroporto, que fica no Queens, até o Bronx, onde fica o NYBG. Além de cruzar de sul a norte a cidade, era a hora do rush. A estrada que liga os dois pontos parece um rodoanel paulista, com a diferença de que não há carros pequenos – unos, corsas, fuscas – todos os carros são enormes – toyotas, fords, furgões chiques e limusines – e são guiados por brancos, negros ou asiáticos em igual proporção. Chamam atenção os bairros residenciais que margeiam a highway, formados por casas simples e etnias de baixa renda, mas estão longe de parecerem as favelas cariocas: a arquitetura é bem americana e linda, bay-windows e alpendres incrustados ao estilo das casas de madeira destruídas pelo furacão Catrina em Nova Orleans. A viagem me custou U$ 75, incluindo-se aí os 15% de tip (gorjeta). O NYBG vai me reembolsar, felizmente.